domingo, 25 de abril de 2010

Velhice precoce

Há uns 5 anos, mais ou menos, escrevi este poema para o concurso do CPAC (Centro de Poesia e Arte de Campinas), que tinha "Crepúsculo" como tema. A classificação em 3o lugar foi a melhor que eu tinha obtido até então, o que me deixou muito contente! Quem declamou o poema na premiação foi o Dr. Alcy Gigliotti, que eu ainda não conhecia. Hoje sei a honra que tive...
Ao final da declamação, Dr. Alcy me disse: "Eu achei que o autor do poema fosse um velhinho, de cabelos brancos. Agora vejo que é a autora mais novinha..." Acho que, nesse soneto, consegui dar voz para essa velhinha chata de mais de 100 anos que nasceu junto comigo em 1984. Essa que de vez em quando ainda pega no meu pé, fala na minha orelha e não me deixa ir para a balada.



Crepúsculo


Quando no céu o rubro raio pinta
E anuncia que a tarde está no fim,
O branco dos cabelos meus tilinta
Em meus ouvidos, a zombar de mim.

E quando os anjos, com pincel e tinta
Vêm colorir as nuvens de carmim,
Lembro que foi na década de trinta
Que eu ao mundo, por vez primeira, vim.

Tenho agora uma dor em cada músculo:
Tal como o dia, eu chego ao meu crepúsculo
E o cansaço se torna meu algoz.

Mas bem sei que, depois da madrugada,
Novo sol nasce, tempo é de alvorada
Que reluz, esperando todos nós.

segunda-feira, 19 de abril de 2010

Funeral inopinado

Um texto meio longo pra um blog, mas vamos lá...
Este é inédito. Escrito em 2006, reformulado semana passada.

Funeral inopinado

“Cada qual cuide de seu enterro, impossível não há!”
Quincas Berro D’Água


O azul enrubescia por trás dos edifícios cinzentos, enquanto o ruído dos motores intensificava-se nas imediações do cemitério. Muita gente se acumulava em frente à sala de velório, esperando o carro funerário que traria o corpo dela.
Muito choro, pessoas arrasadas. Minhas lágrimas contidas para que não embaçassem o espetáculo do pôr do sol no cemitério – talvez o único consolo daquela tarde. Intelectuais amontoavam-se nos cantos, querendo ser vistos, mais do que queriam ver. Certamente apreciariam um Certificado de Participação no Funeral, para engordar o currículo Lattes. Curiosos também surgiam aqui e ali – esses só para ver.
Tão famosa e tão formosa, mas nunca ninguém a vira. Mesmo os que diziam encontrá-la frequentemente embaraçavam-se ao tentar descrevê-la. Alguns achavam que não tinha face. Outros pintavam-na de uma forma, de outra, até sem forma... Talvez tivesse infinitas faces. Quem sabe? Quem sabe no velório revelar-se-ia seu semblante? Talvez a esperança de vê-la sem véu atraísse tanta gente para presenciar o fim. E ninguém conhecia quem tivesse visto o início...
Muitos idiomas confundiam-se no velório. Uma verdadeira torre de Babel erguia-se a cada idéia que tentava ser transmitida. Justo no velório dela, que se fazia entender em qualquer idioma, por simplesmente não falar idioma algum. Grupos de pessoas formavam cochichos aqui e ali, murmurando as perguntas inevitáveis em qualquer velório.
“Do que ela morreu?” “Sei lá... Talvez de fome.” “Acho que foi assassinada!” “Os filhos acabaram com ela...” “A televisão matou ela!” “A TV? Como?” “Ela deixou as pessoas burras, muito burras demais!” “Ela foi uma vítima do capitalismo consumista e utilitarista!” “Ela se matou... O mundo pós-moderno foi demais pra ela...” “Todos mataram ela! Nós a matamos!”
“Deixou filhos?” “Muitos! Todos depravados, pervertidos, desequilibrados...” “Engano seu, as novas gerações são só inovadoras... Estão aí pra quebrar barreiras!” “É, romperam com a coroquice da defunta!” “Da hora!”
“Como ela morreu?” “Aos poucos, foi se apagando...” “Sofreu, coitada...” “Ninguém viu. Um dia perceberam que ela tava lá, dura e fedendo num canto de despensa.”
“Vocês tinham contato com ela?” “Todos os dias! Vai fazer falta!” “Só quando ia no cinema...” “Mas faz tempo que ela não aparecia no cinema...” “Ah, sei lá, eu não sabia reconhecer quando era ela ou não.” “Eu via ela na escola, de vez em quando.”
Olhares miraram o início da rua, onde um carro negro surgia, devagar. Trouxeram-na para a sala de velório e eu me divertia com as expressões desapontadas: o caixão veio lacrado. Que bom! Certas coisas são lindas apenas pelo mistério. Ela perderia completamente o encanto se fosse mostrada em sua concretude. Poderia até desvanecer completamente. Mas certamente se tornaria eternidade se permanecesse como abstração intangível.
“Por que será que o caixão veio fechado?” “Ela tá muito desfigurada...” “É mentira que ela morreu. Tão fazendo isso só pra chocar.” “Você e suas teorias conspiratórias...” “É golpe de marketing!”
Formava-se fila para a derradeira despedida. Eu tinha medo do que sentiria quando me aproximasse do caixão. Sabia que não sofria por ela – onde quer que estivesse, certamente estaria melhor que em nosso mundo. Tinha pena por mim e por todas as pessoas do planeta.
Meus temores eram infundados: senti nada. Sem ela, eu era incapaz de sentir. Ela era a expressão de todos os meus sentimentos. Sem mostrá-los a ninguém, nem a mim, não existiam. Um raio que cai sobre uma árvore sem ser visto nem ouvido nem sentido por organismo algum não existe, certo? A inexistência levou-me a sentir nada e, portanto, nenhuma lágrima. Nenhuma palavra além das usuais “meus pêsames” – porque eu não conseguia dizer “meus sentimentos”.
Não via a hora daquilo acabar, de chegar o fim daquela ladainha de despedida. No horizonte, o anil estrelado começava a derramar-se sobre o azul claro. Lá está ela! Ao menos no céu, ainda existe! E como é bela...
O caixão voltou ao carro, lacrado como veio. Rumo ao crematório. O velho ritual do crematório. Deveriam ser tocadas três músicas e, ao final, o caixão desceria em um elevador. Lá se juntaria aos outros porta-defuntos, ansiando pelo dia da pira funerária. Soaram os primeiros acordes – ruídos estranhos. Surdos, graves e agudos, sem ritmo, harmonia ou melodia. Barulho. Nem todos se importaram, ou sequer notaram. Engraçadinhos se mexiam num canto, em rebolados desengonçados que talvez pretendessem ser uma dança. Como tocar músicas, se ela era a própria música?
Prendi a respiração quando o caixão começou a descer. Seriam as últimas imagens. O ruído do motor que a conduzia para o fundo era mais melódico que a tentativa de música de segundos atrás. Soava como engrenagens de cortinas de teatro, que se fecham para encerrar uma peça qualquer. Mas não havia aplausos. Nenhum som além do motor e do repentino grito grave de um homem aparentemente velho: “Eis! Aqui jaz a Arte!”. Silêncio.
O elevador parado no meio do caminho. Não desceu até o fim. O caixão ainda lá. Não se fora. Como assim? Ninguém falava. Por favor, aconteça qualquer coisa! Qualquer coisa, por favor!
Chamas! O caixão em fogo, numa cremação pública. Repentinamente. Inexplicavelmente. Inconsequentemente. Pânico no crematório. Pessoas corriam e entalavam-se nas portas.
Impressionado, fiquei onde estava e, de olhos e boca arregalados, assisti à cremação da Arte. Aspirava odor de carne humana misturado com incenso. O Humano e o Divino espalhavam-se pelo ar. Tudo se resumia a pó e fumaça. Eu em pé observava, bem de perto. Mais tarde perceberia algumas pessoas ainda lá, resistentes, como eu, acompanhando os ritos de morte que a Arte se dera, quando escolheu sua forma de partir, escandalizando os que dela pouco conheciam.
Restou apenas fumaça, cinzas e pessoas embasbacadas. Nenhum ruído. Nenhum olhar desviando-se de onde antes havia um caixão. Um vento soprou não se sabe de onde – a sala do crematório não tinha janelas... Vento de todos os lados, rumo ao centro, acumulando as cinzas em um pequeno monte. Mágico!
Som surdo de explosão e sobressalto geral: as cinzas solidificaram-se em ave – a mais linda! Conhecedor dos clássicos, logo reconheci a Fênix que nascia, de repente, das próprias cinzas. Indescritível. Continha tudo – todas as obras de arte que já existiram e o germe das que existirão. Cantou. Eu ouvia todas as músicas combinadas entre si, num êxtase polifônico.
De repente voou e esculpiu todas as poesias e pintou todas as danças e regeu todas as comidas e modelou todos os bordados e cantou todos os contos e cozinhou todas as peças e escreveu todas as cerâmicas e declamou todos os desenhos e sumiu pela janela. E assim pude escrever o que havia visto. E assim pude anunciar ao mundo o Renascimento da Arte!

quarta-feira, 14 de abril de 2010

Viagens internas

Na minha última viagem externa, para a Casa de Papagaios (mais conhecida como Ayuruoca), fiquei perdida em muitas viagens internas. O que ficou mais evidente é que preciso ser mais sincera comigo mesma e, conseqüentemente, com os outros, para que a vida comece a fazer mais sentido. Isso significa (também) que chegou o tempo de botar as viagens de dentro para fora.

Andei recuperando umas coisas que estavam sumidas dentro de mim. O violão, os desenhos, os sonhos. Mas o que eu queria mesmo é recuperar a poesia!

Estou procurando as coisas que escrevi muito tempo atrás, com dois objetivos: 1) ver se descubro onde foi parar a inspiração; 2) ver se não perco mais os poemas em CDs e... disquetes! (Pré-história?!)

Não tem mais como postar no falecido blog O Folhetim, que abrigou meus poemas há alguns anos. Então, deixarei minhas viagens poéticas por aqui.

Começarei com uma produção um tanto quanto recente.


Teatro de sombras
2009

Arrevoa a parede
a borboleta negra.
Dinossauro pescoçudo
se arrasta pesadamente,
tromba no bico do pato
que a borboleta virou.
Na boca do jacaré
que abre-fecha-abre-fecha
vem pousar um passarinho,
que já voou...

A cabeleira ruiva
da vela sobre a mesa
empenha-se ardentemente
em combater o apagão.
Seu olhar incandescente
mira no anteparo
as formas irregulares
que ela mesma projetou.
A vela derrama luz
nas mãos da meninada,
e na tela da parede
surgem manchas de nanquim:
dinossauro-pato-pássaro
borboleta-jacaré...

Os meninos brincam de eclipsar a parede.

Meninos sabidos!
Manipulam a luz
pra espantar o medo,
que é feito de sombras.