sábado, 29 de maio de 2010

Viagem noturna

Sexta-feira à noite, uma linda e enorme lua cheia no céu. Irritei-me com a solidão. Na cabeça, aquela música do Chico Buarque:

"Eu vou sair
Por aí afora
Atrás da aurora
Mais serena"

Saí mesmo, sozinha. Descoberta: desacompanhada, abro portas para novas companhias. Topei com gente muito diferente de mim. Tenho gostado do jeito dessas pessoas diferentes. Mesmo que seja um jeito que não tem jeito de ser meu.

Quatro e pouco da manhã abri a porta de casa, meio embriagada de sono, cerveja e novidade. Arranquei a roupa e deitei, por falta de paciência para vestir um pijama. A viagem continuou.

Estive na minha casa, que não era esta onde moro. Muita gente lá: mãe, irmão, primos, amigos. Era madrugada. Eu sentada em uma mesa ao ar livre, que tinha esfihas. Mamãe me mandava comer: "você precisa jantar". Nada me apetecia, não tinha apetite. Eu dizia: "é madrugada, nada cai bem a essa hora, não vou jantar."

Havia um rapaz que não conheço. Namorado, ficante? Não sei. Ele comia.

O sol nascendo transformava o céu numa impressionante pintura colorida. "Tá vendo, mãe? Já tá amanhecendo, não tem por que jantar". "Já? Nossa, verdade, eu não tinha percebido! Que lindo! Então toma café da manhã.".

Só de pensar em colocar alguma coisa na boca, o estômago se contorcia. Levantei da mesa com meu companheiro desconhecido e lembro que meus primos tropeçaram na gente, enquanto nos agarrávamos no chão da garagem. "Desculpem, pombinhos!".

Percebi que minha casa tinha um grande quintal com churrasqueira e me perguntei por que nunca chamei meus amigos para um churrasco. "Farei isso em breve." Descobri que o armário do corredor era um escritório, mas eu não tinha vontade de trabalhar nele. Ambiente esquisito...

Encontrei um amigo (senhor de uns 50 a 60 anos) que estava com as três filhas, todas lindas, de olhos azuis. Contou que descobriu que tinha mais um filho: um garotinho de uns quatro anos. Estava em processo de reconhecimento de paternidade. "Aliás, sabe que eu nem sei mais quantos filhos tenho? Sempre aparece mais um... Preciso criar um critério para saber quais são meus filhos de verdade e quais não são, antes de sair o exame de DNA".

Telefone tocou (de verdade, não no sonho). Foda-se, tô dormindo! Insistiu demais. Levantei. A vó me convidando pro velório e posterior crematório da minha tia avó. Ainda bem que era convite e não convocação, porque sem condição depois disso tudo.

Andei atrás da aurora, encontrei-a, ainda que em sonho. E agora?

terça-feira, 25 de maio de 2010

Morte: a cidade oprimida no hábito aceso

Silêncio. Velas acesas. Penumbra. É noite. Só se vêem pontos vermelhos luminosos: olhos e brasas, olhos em brasa.
Pessoas sentadas nos cantos. Olham-se sem se ver. Não falam. Não se mexem. Todos de negro. Velório. Não há caixão. Mas há defuntos. Mortos no gozo. Pulsão de morte. Cheiro de morte com gosto de unhas. Olhos parados. Corpo flácido. Fim de consciência.
Sem ação. Sem interação. Seres inertes. Gozando o silêncio. Gozando em silêncio. O silêncio goza deles. Pois sabe que em breve será eterno. Sono eterno. Sono profundo. Alguns dormem. Todos sonham. Sonhos gozados.
Gozo sombrio. Gozo de morte. Gozam da morte. A morte goza deles. Gozo proibido. Gozo velado. Velas na penumbra. Gozo distante. Gozo forçado. Gozo solitário. Masturbação.

quarta-feira, 19 de maio de 2010

Marginal

O carro
Parado
Apressado
No trânsito
Pesado

O cheiro
Podre
Do morto
Pesando
No ar

No leito
Espera
O eleito
Que venha
Limpar

Ou que
Lhe tenha
Piedade
E um dia decida
Enterrar

A gente
Passa
Afobado
Parado no trânsito
Congestionado

Diante
Do defunto
Gigante
Que não há caixão
Para acomodar

E fecha
A janela
Do carro
Tapando o nariz
Batendo o cigarro

O morto
E as moscas
Repousam
No leito
Turvo

O trânsito
Abre e
A gente
Se vai
Sem olhar

Em vez
Do cheiro
Mórbido
É cheiro de alívio
Que paira no ar

terça-feira, 11 de maio de 2010

XXI

Está aí, chegou!
Maioridade total do mundo cristão.
Vão todos recebê-la, braços abertos como cruz,
tentando largar fardos no número 12 do relógio,
estourando pólvora nos erros do passado
enquanto noutra parte do mundo,
pólvora comete erros letais.
Impede a Terra de vestir calcinha branca.

Os mais sensatos se perdem na utopia
de a humanidade trocar arma por amar.

Enquanto uns oram pedindo virtude,
por medo, amor ou precisão,
outros anestesiam-se, alucinam-se,
e julgar é tarefa absurda, imoral.
A gente sabe que o que faz num segundo,
por mais que o segundo seja último e primeiro,
dura só um segundo, não mais que um segundo,
e o que vale é a somatória de todos os segundos.

Durante a azáfama da madrugada,
ela não pára, não descansa, gira!
Continua a dança que dança há tempo que excede o espaço imaginário.
Alheia à dor ou ao júbilo,
indiferente aos fatos simultâneos e contraditórios
e às comemorações de mais um aniversário.
Tão crua, tão máquina, tão certa, será somente
científica?