domingo, 31 de outubro de 2010

Águas Calientes

Para ir a Machu Picchu a partir de Cusco, contratei um pacote de viagem que incluía transporte de ônibus até Ollantaytambo, de onde peguei o trem até Águas Calientes, povoado próximo do sítio arqueológico. Achei que contratando um pacote turístico a viagem teria menos improvisações, mas eu estava enganada.

Viajar até Ollantaytambo foi um show a parte: a estrada é de mão dupla, descendo a montanha (Machu Pichu está a 2400m de altitude, enquanto Cusco está a 3400m) e, portanto, cheia de curvas. De um lado há o paredão de pedra, do outro, o abismo. Entre a estrada e o abismo há uma faixa de terra bem estreita, onde pastam algumas lhamas, vacas e outros animais. O motorista da van não estava nem aí: em alta velocidade, com a segurança de quem passa lá todos os dias, ia fazendo suas curvas sinuosas, invadindo a pista do sentido contrário em vários trechos. E como ter medo nessas horas não adianta nada, acabei dormindo.

Acordei já em Urubamba, onde algumas pessoas desceram. O lugar ao meu lado ficou livre e um rapaz se mudou para ele. Chama-se Edison e estava indo a San Matias a negócios: precisava fazer reservas de hotel para uma excursão de 51 pessoas que chegaria na cidade 1h da manhã (incrível como as agências de turismo peruanas deixam tudo para a última hora...).

São duas horas de trem de Ollantaytambo a Águas Calientes. O caminho todo é repleto de picos nevados, campos floridos e o rio Urubamba que, naquela região, é conhecido como Bilcanoti. O trilho do trem acompanha o curso do rio. Durante todo o caminho, fui andando pelo vagão, procurando o melhor ângulo para observar a paisagem e tirar fotos.

Vista da janela do trem

Edison mora em Cusco e já morou em Águas Calientes, tem experiência no assunto. Disse que se eu esperasse até ele terminar seus negócios, poderia me levar para conhecer lugares legais. Como eu não tinha o que fazer naquela tarde, aceitei. Saímos "a caminar", seguindo uma estrada de terra que acompanhava o trilho do trem e o curso do rio. Muito bonita, cheia de plantas e animais, com vista para os picos andinos.

No caminho, paramos em um "mariposario" (descobri que mariposa, em espanhol, é borboleta). O funcionário me mostrou ovos, lagartas, casulos e borboletas de vários tipos e tamanhos. Fica bem ao lado do rio e me disseram que foi preciso começar tudo de novo depois da famosa enchente que deixou os turistas presos em Águas Calientes.

Seguimos o passeio. Muitos mochileiros passaram por nós no sentido contrário, pois a estrada em que estávamos liga Águas Calientes a Machu Picchu. Tem gente que opta por seguir a pé, ou é forçado a isso porque perdeu ônibus ou o trem. Chegamos numa porteira onde havia uma placa: "paradero de Mandor". Edison chamou a mulher que morava lá e pediu permissão para entrar em sua propriedade e ir até uma cachoeira. Ela nos deu permissão e não cobrou nada, porque já estava escurecendo e ela disse que conseguiríamos no máximo chegar até a ponte.

A ponte

A trilha era por dentro da mata fechada. Quanto mais adentrávamos, mais ficava escuro, úmido e frio. Passamos por partes de terra, de pedra e cobertura de folhas. Cada pedacinho de trilha tinha características próprias, me pareceu. Tudo ia mudando: os sons, a temperatura, a iluminação, a umidade. Chegamos à ponte de madeira sobre o rio, que não tinha nada em que pudéssemos segurar para atravessá-la. Conta-se apenas com o equilíbrio.

Mais à frente, lá estava a cachoeira, ou "catarata", como dizia Edison. É de tamanho médio, nada impressionante em relação às que vi em Barra do Garças ou na Chapada. A principal diferença é a temperatura: muito fria! Apesar de não ser possível nadar, sente-se o gelado de longe, pelas gotículas que se desprendem na queda d'água. Edison disse que essa água vem do derretimento dos picos nevados.

Enquanto sentíamos a cachoeira, foi escurecendo. A mata na penumbra se torna mais misteriosa, mais fria e úmida. Vi a primeira estrela aparecer no céu: Vênus. Aos poucos as outras foram surgindo, no alto e no chão: vagalumes piscavam aqui e ali. Com o início da noite, tudo vai mudando: uma parte da natureza se recolhe, outra vai acordando. Usamos a lanterna do celular do Edison para iluminar o caminho. Passar pela  ponte com essa luz fraca foi uma experiência interessante.

Catarata muy helada

Para voltar à cidade, poderíamos caminhar cerca de 1h pela estrada, como havíamos feito para chegar no paradero de Mandor. Mas Edison disse que era mais fácil esperar o trem, porque se fizéssemos sinal ele pararia para subirmos, como se fosse um ponto de ônibus. Nunca vi isso na vida rs... Sentamos perto da cerca e ficamos esperando, sabíamos que o trem passaria em cerca de 45 min. Mas poucos minutos depois, ouvi um ruído sobre os trilhos e, ingenuamente, levantei e fiz sinal, achando que fosse o trem. Só dava pra ver a luz dos faróis... A coisa foi se aproximando e diminuindo de velocidade, então vi que definitivamente não era o trem. Era uma espécie de carro sobre trilhos, mas parecia mais um trator. Tinha uma lâmpada giratória no alto, como as viaturas policiais. Dentro da coisa havia dois homens e um menino, e um rádio transmissor que não parava de falar espanhol. Edison perguntou se poderiam nos levar à cidade e eles disseram que sim. Entramos no negócio e em menos de 15 minutos estávamos lá, ainda que eu nem soubesse que veículo era aquele. Depois Edison me explicou que é o carro que passa na frente do trem, verificando se os trilhos estão limpos, removendo galhos, etc. Foi a carona mais estranha que já peguei na vida...

Voltei ao hotel, onde o guia foi me visitar, para explicar como seria a excursão a Machu Picchu. Depois fui jantar, comi "el lomo saltado", prato típico peruano. E fui dormir 9h da noite, muito, muito cansada.

Só eu, mesmo, para ir a Águas Calientes e conhecer águas muy heladas...

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Cusco

Não tenho muito tempo para escrever agora, mas quero deixar relatadas minhas primeiras impressões sobre Cusco antes de ir a Machu Pichu (partindo em 2h).

Vista da janela do avião, quase chegando em Cusco

Partindo de Rio Branco de avião (o preço da passagem e o tempo economizado compensam muito em relação ao ônibus), fomos subindo, subindo e eu já estava achando que ia parar na lua, porque nunca estive num voo que subiu tão alto rs... Como o céu estava nublado no Acre, fiquei lendo o guia turístico em vez de olhar pela janelinha. Mas dali algum tempo dei uma espiada e fui abrindo a boca, assombrada. Foi a primeira vez que vi neve, ainda que à distância, naqueles picos que ficam perenemente com a cabecinha branca.

Descer em Cusco é emocionante, o piloto tem que fazer muitas manobras radicais para poder desviar dos picos de montanha. E pousamos 3.000 metros acima do nível do mar. Fiquei com um pouco de medo do "soroche", o mal da altitude. Mas não senti nada no começo. Só depois de umas duas horas é que me senti leve, quase flutuando, meio tontinha, achando tudo muito engraçado como se estivesse levemente embriagada. A única desvantagem era a taquicardia cada vez que eu subia escada ou tentava andar um pouco mais rápido. El soroche é um bom remédio para o mal paulistano, esse que faz as pessoas correrem em vez de andar. Mas se no primeiro dia me senti leve, no segundo foi o contrário: fiquei pesada, como se tivesse um tijolo em cima de cada pé. Fiz tudo muito lentamente, porque não tinha outro jeito.

El soroche não impediu que eu passeasse bastante pela cidade. Conheci a Catedral, Igreja de San Blas, Companhia de Jesus. Fiz um city tour e conheci ruínas incas incríveis. Cada local que eu conheci merece um post a parte, então eu conto depois, com mais calma. Agora só quero relatar as impressões gerais.

Tudo aqui é uma mistura de cultura inca com cultura espanhola. E não é uma mistura heterogênea, dessas que a gente consegue enxergar as duas fases, como quando se tenta juntar óleo com água. As duas partes realmente andam juntas e pode-se vê-las em cada esquina, em cada monumento, em cada ruína, em cada cusqueño.

Fachada da Catedral de Cusco

Assim como no Brasil houve um sincretismo entre a religião católica e a dos negros, aqui se vê o sincretismo católico-inca. Os deuses incas são representados por figuras católicas nas igrejas. A mais evidente é a Pachamama, principal deusa inca, pois representava a fertilidade, a terra, o poder de geração feminino, a energia criadora. Nas igrejas, ela é representada como a Virgem Maria, que assume um papel mais importante que Jesus Cristo ou Deus. Os altares para Virgem Maria - Pachamama são mais evidentes, mais suntuosos, normalmente adornados com prata (para os incas, prata = feminino, ouro = masculino).

As pinturas que adornam as igrejas representam os motivos católicos mais clássicos, mas no meio da crucificação tem lá uma lhama, na Santa Ceia foi servido um cuy (um roedor que é feito geralmente assado, comida típica daqui). As igrejas, conventos e monastérios foram erguidos sobre as ruínas dos templos incas, que foram parcialmente destruídos pelos espanhóis. As pedras dos templos incas e a mão de obra desse povo foram usadas para construir os templos católicos. Os altares revestidos de folhas de ouro e prata também são uma reutilização do material que constituía os ídolos e objetos incas.

Mate de coca, bom pra passar el soroche

As igrejas daqui são muito vivas. As "esculturas" representando Maria, José, Jesus e um batalhão de santos são flexíveis, pode-se mover os braços, pernas e cabeça, como se fossem bonecos. As costureiras da cidade fazem diversas roupas lindamente bordadas, com as quais vestem as imagens, trocando as vestes de tempos em tempos. Os cabelos são naturais e doados por pessoas da cidade, também trocados ao longo dos anos. Visitei muitas igrejas na França, Itália e Alemanha, mas acho que essas daqui não deixam nada a desejar, pelo contrário.

No mais, o albergue em que estou é limpo, confortável e tem pessoas legais. Estou fazendo aulas particulares de salsa. Acho tudo aqui muito caro, estou gastando bem mais do que eu previa (ainda bem que achei um caixa eletrônico para sacar soles diretamente da minha conta do Banco do Brasil). E vou para Machu Pichu daqui a pouco! :-)
Até mais...

terça-feira, 26 de outubro de 2010

Rio Branco

Esta é a quarta vez que venho para o Acre. São Paulo – Rio Branco foi minha primeira viagem de avião, em 1991, com sete aninhos. Depois voltei em 1996, 1998 e agora, 2010, após doze anos. As viagens para Rio Branco são parte importante da minha biografia. Foi a primeira experiência de estar muito longe de casa e sem mamãe e papai. Minha última passagem por aqui foi aos 14 anos. Iniciação à adolescência, aprontando por aí acompanhada dos primos um pouco mais velhos. Na época, a gente curtia as baladas na boate Imperador Galvez, os banhos de madrugada nos açudes do Quinari (cidade pequena, pertinho de Rio Branco, que tem o nome oficial de Senador Guiomard), tardes inteiras jogando Super Nintendo, conversar e andar de bicicleta e patins pela rua.

No meu primeiro dia em Rio Branco, o termômetro me deu as boas vindas.

Claro que agora tudo é diferente. A Imperador Galvez virou um hotel, ninguém mais vai nadar no Quinari, o Super Nintendo foi substituído por Play Station e não há mais tempo para passar a tarde jogando, bicicleta virou meio de transporte (superado há muito tempo pelos carros) e patins... não vi nenhum! Até a praça que tinha os halfs, perto da casa da tia, não existe mais.

Fui sentindo as mudanças desde que saí de Cuiabá. O avião é diferente. Naquele tempo eram sempre aviões grandes, não existiam esses voos domésticos pequenos. Foi emocionante ouvir o ronco das hélices a cada manobra! Sobrevoando Rio Branco, embora fosse de noite, já percebi a diferença só pelas luzes da cidade. Pareceu-me maior em extensão, avistei mais pontes do que as que eu conhecia sobre o Rio Acre, havia prédios altos (quando eu vim, o único prédio “alto” era o Banacre, de uns cinco andares) e até o aeroporto estava em outro lugar. O antigo aeroporto foi desativado, dando lugar a outro muito mais moderno, que tem até esteira elétrica para as bagagens, em vez do balcão onde os carregadores tacavam as malas de qualquer jeito. Mas dizem que como está no meio da floresta, tem havido muitos problemas com as chuvas.

Ao dormir, outra surpresa: deixei a janela aberta e nada de carapanãs (pernilongos). Dizem que é porque a estação de chuva ainda não chegou... Agradeço, porque uma cidade que me recebe com 32 graus às 11h da noite tem mesmo que me deixar dormir de janela aberta.

Um bonito pôr do sol na beira do açude

Mas foi no dia seguinte que pude ter noção do tamanho da mudança. Saí para andar sozinha, como fiz em todas as cidades pelas quais passei até agora. A primeira impressão é sempre a mais marcante...

A rua onde fica a casa da tia e a da prima foi maquiada com asfalto por cima dos tijolos. Sim, o calçamento dos bairros era de tijolo. Diziam que era porque o asfalto derretia e não havia pedras por perto para fazer ruas de paralelepípedo, como temos em São Paulo. Quando parti do Acre para São Paulo em 1998, ganhei um pedaço de tijolo de presente dos amigos que fiz durante as férias. “Este presente é para você sempre se lembrar da nossa rua...” Deu certo, eu lembro bem e, aliás, o tijolo ainda está guardado. Mas a rua, só se sabe que foi de tijolos porque o asfalto está roto em diversos trechos, revelando o calçamento vermelhinho que é a verdadeira identidade do pedaço.

Há em Rio Branco um certo esgoto, chamado antigamente de “canal da maternidade”. Corregozinho fedorento. Agora plantaram grama ao redor do córrego, construíram uns arcos e colocaram uma placa: Parque da Maternidade. Mas continua escuro e fedorento como antes.

Ponte sobre o Rio Acre, que há muitos anos não ficava tão baixo

O centro está simplesmente irreconhecível. Cadê os casebres de madeira, os índios pedindo esmola no semáforo? Os prédios públicos foram reformados, a praça não tem mais árvores. O mercado velho foi reformado e também ficou novo. O Rio Acre, que só tinha a ponte velha (de metal) e a nova (de concreto), agora tem umas cinco pontes, inclusive algumas com estaios. Atravessei pela ponte de pedestres (dessas novas que fizeram) até a Gameleira, bairro dos mais antigos da cidade. As casinhas de madeira estão todas reformadas e coloridas. Mas cadê aquele monte de palafitas que ficava naquela altura do rio? Sobrou apenas meia dúzia de casinhas, o resto desapropriaram e demoliram.

Aliás, palafita no Rio Acre não tem razão de ser ultimamente. Nunca vi o rio tão baixo. Lembro das grandes balsas que passavam por lá, transportando gente e mercadoria. Jamais poderiam circular agora. Uns dizem que são as mudanças climáticas, outros dizem que é o assoreamento. Deve ser os dois.

Aproveitei a breve passagem por Rio Branco para matar as lombrigas: comi açaí (o da região norte é bem melhor que o do sudeste) e tacacá. Acho que tacacá precisa de explicação... É um caldo feito com folhas da região amazônica, camarão e goma (algo transparente e pegajosos feito de mandioca). Deixa a boca adormecida e formigando. Mais explicações na Wikipedia.

Tacacá

Visitei muitos museus, alguns que eu já conhecia (mas mudaram, como tudo na cidade) e outros que não existiam em 1998. Os guias me explicaram toda a história do Acre, que eu já conhecia mais ou menos de tanto conversar com a tia e os primos. Um dia ainda farei um post para contar a história do Acre. Por enquanto basta dizer que a região pertencia em parte à Bolívia e em parte ao Peru e foi anexada após muitas batalhas. Outras lutas foram necessárias para elevá-lo de território a estado. Tem também a disputa pelos territórios com os índios, pois 14 etnias moram no estado (cabalístico, não?). Quase tudo na história do Acre parece ser uma busca por independência e autonomia. Disseram que até o 2º Distrito (região na margem do rio oposta ao centro) estava querendo se tornar uma cidade independente, tempos atrás.

Estava acontecendo um evento interessante no parque Horto Florestal, a feira Panamazônia, com artesanato de várias regiões da América Latina. Nos letreiros, estava escrito: Peru, Bolívia, Guatemala, Acre, ... Peraí, Acre em vez de Brasil?! Sim, parece que eles já estão querendo se tornar um país independente. ;-) Na Panamazônia tive a oportunidade de ver o Heloy de Castro tocar ao vivo. Um grande cantor e compositor nascido em Minas Gerais, mas mora em Rio Branco há uns quase 30 anos e suas músicas retratam um pouco do espírito da região. Procurem no YouTube para saber mais...

Enfim, impressionou-me a quantidade de mudanças em Rio Branco, algumas boas e outras ruins, mesmo considerando que se passaram 12 anos. Mas dá perceber que a maior parte delas é superficial, uma espécie de maquiagem. Saindo do centro, continuam existindo casebres, mendigos, bêbados, lixo, urubus rondando o lixo. Mas há uma mudança mais difícil de maquiar: a das pessoas. De um modo geral, achei-as menos abatidas, mais felizes, um pouco mais educadas, mais bonitas até... Percebo que Mato Grosso e Acre desenvolvem-se rapidamente, muito mais que São Paulo e Minas Gerais. Parece que o futuro está, de fato, indo para o norte do país.

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Chapada dos Guimarães

Saindo de San Matias, senti um alívio enorme. Eu não via a hora de me afastar de lá, de ir para Cáceres, de ir mais além de Cáceres, de tomar banho e tirar do corpo o cheiro daquele lugar. Mas ir aonde? Os planos de viagem precisavam de reformulação. Foi assim que, chegando em Cáceres, procurei duas coisas de que eu precisava urgentemente: comida e lan house. Após o almoço comecei a pesquisar rotas e preços de passagens e foi assim que defini que o próximo destino seria Rio Branco (AC). Mas para isso, eu precisaria voltar a Cuyaba, o que até me agradou...

Nadando rumo à cachoeira


Descobri pela internet o albergue Portal do Pantanal e fiz reserva. O local me abriu as portas não exatamente para o pantanal, mas para a Chapada dos Guimarães. A sugestão foi do Esmael, empregado do albergue e condutor turístico. Fomos ao circuito das cachoeiras, no Parque Nacional da Chapada dos Guimarães.

A primeira surpresa foi observar que os paredões de pedra seguiam o mesmo padrão do Roncador. A serra provavelmente se prolonga até lá, com suas formações rochosas que lembram faces e animais, seu tom avermelhado, suas cachoeiras, seus mistérios.

Mas por mais que seja bonita, a região não tem a magia que senti nas proximidades de Nova Xavantina, Barra do Garças e Canarana. Talvez isso seja também porque o grupo desceu conversando, rindo, falando alto, discutindo política. Gosto de estar na natureza em silêncio, para ouvi-la e senti-la. Nosso barulho espanta o que há de melhor nesses espaços, é preciso saber calar para perceber...

Cachoeira das Andorinhas, a que mais gostei

De qualquer maneira, foi ótimo sentir o sol quente na pele mais uma vez, nadar, lavar a alma em todas as cachoeiras em que pude, tirar do corpo aquela coisa pegajosa que ficou grudada em mim na frustrada tentativa de Bolívia. Fizemos o percurso junto com um outro grupo de turistas que seguia acompanhado de outro guia, o Lázaro, amigo de Esmael. Depois de percorrer toda a trilha, chegamos à casa de pedra, uma grande gruta onde os bandeirantes costumavam se abrigar em tempo de chuva.

Casa de Pedra

E por fim, fomos à cachoeira Véu de Noiva, que pudemos ver de longe. Não estava tão branquinha, porque é estação das secas, o fluxo de água está pequeno. Está fechada para banho desde que um pedaço de rocha se desprendeu do alto do despenhadeiro, matando uma moça. Junto à cachoeira há um bom restaurante onde comemos galinhada, farofa de banana e tomamos cerveja para refrescar e recuperar o fôlego após a caminhada.

Cachoeira Véu de Noiva

De lá, Esmael acompanhou-me de volta ao albergue, tomei banho e fui ao aeroporto para voar para Rio Branco (AC). Acordar andando na Chapada dos Guimarães e dormir no Acre... quem diria!

Aproveito para agradecer ao Esmael, guia atencioso, nascido na Chapada dos Guimarães e conhecedor das rotas e trilhas do Parque Nacional. Acaba de tornar-se um empreendedor individual, saindo da informalidade, e estreei seu empreendimento sendo a primeira turista que ele acompanhou após dar esse importante passo. Estou contente por poder ajudá-lo, ainda que só um pouquinho, a montar seu blog para divulgação do trabalho. Aliás, se tiverem interesse em contratar um guia na chapada, podem pegar o contato dele no blog, recomendo.

domingo, 24 de outubro de 2010

Cuyaba

Este post está atrasado, deveria ter vindo antes de San Matias. Passei pela cidade na rota entre Canarana e Cáceres, ainda com o objetivo de entrar na Bolívia.

Sim, escrevo Cuyaba em vez de Cuiabá, porque era assim que se esccrevia o nome da cidade na época de seu batismo. O Y era usado em todas as palavras de origem indígena.

Cheguei à cidade no dia 25 de outubro, vindo de Canarana e confesso que, no caminho até a rodoviária, pensei: sem graça... cidade normal, grande, sem atrativos. Mas percebi que fui injusta. Quando saí da rodoviária rumo ao camelódromo, para procurar o cabo de minha câmera, vi muitas placas indicando pontos turísticos. Encontrei o cabo, olhei no relógio e vi que já tinha perdido o ônibus das 11h para Cáceres. O próximo sairia 14:45. Sinal de que eu deveria conhecer Cuyaba, ainda que por algumas horas.

Museu Histórico de Mato Grosso

Fui ao centro, cheguei na Praça da República. É bonitinha, cercada pelos prédios antigos, como o Palácio da Instrucção e o Museu Histórico de Mato Grosso. Não consigo ver museu sem entrar, então lá fui eu, aprender um pouquinho sobre a história do estado onde eu estava. Pode ser que, em algum momento, eu consiga contar com mais detalhes o que aprendi, mas por enquanto, posso dizer que tudo tem a ver com bandeirantes, projetos de ocupação do oeste do país, guerra do Paraguai, intensos conflitos entre os interesses dos colonizadores, mineradores, Estado, indígenas, fazendeiros... Ou seja, o mesmo cenário que se estende até hoje naquela região.

Palácio da Instrucção

A Praça da República tem uma estátua da Justiça muito diferente da habitual: uma mulher vendada e segurando uma balança, como sempre, mas tem sobre os joelhos um Cristo em estilo La Pietà. Além disso, ela é um tanto sensual, com pernas grossas e sapato de salto alto. Aos seus pés, pessoas estão prostradas no chão e um dos pés esmaga uma pobre figura aparentemente desmaiada. Concluí que a justiça no Mato Grosso é cega, mas também piedosa, sensual e esmagadora.

Estátua da Justiça, na Praça da República

O centro histórico também tem casas antigas ao longo de calçadões, preservadas pelo patrimônio cultural, hoje transformadas em comércio. Aproveitei para almoçar por lá, tomei um café e já estava voltando para a rodoviária quando vi uma igreja que me pareceu interessante. Ficava num lugar elevado e parecia ter estilo gótico. Resolvi andar até ela e valeu a pena subir a ladeira. Descobri o nome: Igreja de Nossa Senhora do Bom Despacho. Fica ao lado de um seminário e atualmente tem também um museu de arte sacra, que infelizmente estava fechado por ser segunda-feira.

Igreja de Nossa Senhora do Bom Despacho

Entrar na igreja foi uma surpresa. O cenário é meio diferente do que costumo ver em igrejas católicas. A primeira coisa que me chamou a atenção foi o som de pássaros. Canto de pássaros dentro da igreja? Tentei descobrir se eram "de verdade" ou uma gravação (mas quem é que põe gravação de som de pássaros dentro de igreja?). Depois de algum tempo procurando, vi mesmo passarinhos voando pelo teto, acima do forro. Não sei se moram lá, se foi só naquele dia, se foi alucinação minha, mas eram muitos, em revoada! E no altar, havia um tapete grosso de pelos e algumas pessoas sentadas ou ajoelhadas sobre ele, sem sapatos, orando. Lembrou-me algo oriental. Uma escada na nave da igreja levava a uma parte superior, de onde pude ver toda a nave e o altar do alto. Bonito e intrigante! Ainda me pergunto sobre o simbolismo da igreja e a interessante energia que há por lá, meio acolhedora, meio mágica, meio oriental, meio popular.

Saí de lá para a rodoviária pensando que precisaria voltar a Cuyaba para continuar conhecendo a cidade, que parece oferecer muitas atrações turísticas (e eu não imaginava...). Mal sabia eu que estaria de volta apenas dois dias depois...

San Matias - Parte III (final)

Acordei 5h da manhã e tentei sair para comprar passagem (disseram-me que tem fila e os primeiros pegam os melhores lugares no ônibus). Mas o portão do hotel estava fechado e precisei esperar até 6h para os donos resolverem abrir. Não fez diferença, porque a cidade continuava em greve, guichês de comprar passagem estavam fechados. Algumas coisas abriram: açougue, a feira com barraquinhas vendendo legumes e verduras. Tudo numa sujeira braba. Melhor nem pensar na procedência dos ingredientes do El Pantanal.

Os comerciantes confirmaram que a greve continuava e o rádio havia anunciado que nenhum ônibus chegaria ou sairia de San Matias naquele dia. Encorajaram-me a ficar mais uma noite, porque no dia seguinte haveria ônibus para Santa Cruz "com certeza". Foi quando me deu o chilique e decidi que não ficaria ali nem por mais meia hora!

Placa: "no habra atencion hoy dia 19_10_10 motivo paro cívico de 24Hrs".
Ainda se fossem apenas 24h...

Saí a passos rápidos (ritmo de paulistana com pressa) para o hotel, enfiei as coisas na mochila de qualquer jeito, entreguei a chave e fui embora. Fui para fora do centro da cidade, na esperança de encontrar um taxi que furasse a greve. Apenas um passou por mim, e não quis parar. Continuei andando para lá e para cá, muito nervosa. Um boliviano sentado na calçada de sua casa fez um sinal com a mão, para que eu me aproximasse. Expliquei a situação. Passou um amigo dele de moto, os dois começaram a conversar. O motoqueiro ficou me olhando, parece que com pena. Respirei fundo e me aproximei, ofereci 20 bolivianos para ele me levar até a fronteira. Topou na hora.

Papagaio que ficava empoleirado no escorredor de pratos do hotel. Exemplo de higiene boliviana...

Foi assim que consegui sair da Bolívia: de moto, com uma mochila de 10 Kg nas costas e outra de 2 Kg pendurada na frente do corpo, louca para voltar ao Brasil, à beira de um ataque de nervos. Atravessei a pé o limite entre os dois países, fui revistada pela polícia federal. O policial fez muitas perguntas, meio desconfiado. Não estão acostumados com turistas, muito menos com moça novinha andando sozinha por aí. Mas assim que tirou da minha mochila um pacote de roupas sujas, algumas meias, calcinhas e guias de viagem, parece que se convenceu de que eu não tinha drogas nem muamba. “Você tem coragem, moça! Andar por aqui sozinha...”

Fiquei em Corixa durante 2h, esperando o ônibus partir. Aos poucos outras pessoas foram saindo da Bolívia e se juntando a nós. Começaram as conversas, logo vieram as discussões sobre política. Uma mulher falou que a Dilma queria acabar com todas as religiões no Brasil, ouviu isso no debate. Perguntei:

- Mas foi isso mesmo que ela disse? Tem certeza? Foi exatamente assim?
- Foi! Ela disse que presidente não tem religião, que é a favor do aborto e do casamento de gays e lésbicas! Mas isso é contra a Bíblia, é contra a palavra de Deus!
- Eu acho que o governo não pode mesmo ter religião. Porque tem que dar espaço para cada um ter a religião que quiser. Ou até pra não ter religião, se quiser.
- Isso é contra a Bíblia! Contra a palavra de Deus! Eu sou Adventista do Sétimo Dia e...
- Então, a senhora é adventista, tem gente que é católico, protestante, budista, umbandista... O governo tem que dar espaço para todos.
- (Exaltada) Isso é contra a Bíblia! Põe a mão aqui em cima! (me mostrou a Bíblia) Põe a mão, que você vai entortar!

Pus a mão sobre a Bíblia da mulher, olhei nos olhos dela e disse:

- Já tô muito torta, ou ainda não?
- Não brinque com a palavra de Deus!
Sorri, dei uma piscadinha e falei:
- Não estou brincando.

Por incrível que pareça, a mulher se acalmou. Falou que é professora de ensino infantil, afastada por problemas na coluna. Estávamos conversando quando ouvimos um estouro. Tiro de 12, na opinião de um, pneu estourado, na do outro.

Quando finalmente o ônibus saiu, senti um alívio enorme. Ainda passamos na GEFRON, revistaram minhas malas de novo. Mas nada como sair de perto de San Matias, esquecer aquela vibração pesada e esquisita. Nunca mais quero pisar lá. Quando for à Bolívia, prefiro pegar carona numa nave vogon a ir por San Matias. Em todo caso, consegui manter a sanidade mental e seguir o lema dos mochileiros da galáxia: don’t panic!!!*

Siriema em cima do carro, fotografada ao lado da GEFRON, enquanto outros passageiros eram revistados.

Amigos me recomendaram ter cuidado para não entortar, já que ousei colocar a mão na Bíblia da mulher. Aviso que já nasci torta e, de acordo com os filósofos do Tchan, “pau que nasce torto nunca se endireita”. Por isso não tenho medo de tiazinhas histéricas com Bíblia na mão. Só tenho muito medo de San Matias...




*Referências ao livro "Guia dos mochileiros da galáxia", de Douglas Adams. Ver: Vogons, e também Não entre em pânico.

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

San Matias - Parte II

Acordei no mesmo quarto de hotel meio encardido, toda suada, morrendo de calor, porém mais calma. De estômago cheio e menos cansada, consegui deixar de sentir medo. San Mathias me lembra Vale dos Sonhos: um povoado que tem ruas de terra vermelha e umas poucas pessoas aglutinadas em torno de um pequeno comércio, em meio a um monte de fazendas.

 Regulamento do Hotel La Paz: "... el que se queda afuera se queda ..."

Qual é a diferença entre San Matias e as outras cidades pequenas que já conheci? Muitas! A língua, as pessoas, a falta de infra-estrutura, a energia pesada de um lugar onde a única lei que funciona é a da malandragem. Mas ao mesmo tempo, San Matias assemelha-se às pequenas cidades brasileiras no que diz respeito ao estilo de vida dos habitantes: as pessoas se conhecem, é uma comunidade, tudo se pode fazer a pé (embora teimem em usar moto e camionete), criam-se galinhas e outros animais comestíveis e domésticos em casa. Foi pensando nisso que me perguntei: afinal, qual é a dimensão real do perigo? O que me ameaça? Concluí que o medo e o perigo estão na nossa cabeça e decidi não ter mais medo.

Resolvi sair, tomar ar, comprar água no El Pantanal e descobrir se o comércio já havia voltado a funcionar. Infelizmente, ainda tudo fechado. Até El Pantanal estava trancado. Sentei no banco de praça e fiquei olhando o movimento (ou melhor, a falta dele). Crianças brincando, mulheres passando com filhos e sombrinhas, pessoal andando de moto. Aqui ninguém usa capacete, é comum ver mais de duas pessoas na mesma moto e quase todas as camionetes levam e trazem pessoas na carroceria. Uma moto levando duas mulheres e duas crianças pequenas passou por mim diversas vezes.

Havia um carrinho de vender uma bebida estranha, só sei que é gelada e ocre. Muita gente aglomerada em volta, resolvi ver o que era e, quem sabe, comprar água (se tivesse). Não tinha água, mas tinha muitos bêbados e um invocou comigo. Ofereceu-me a tal bebida e sentiu-se ofendido porque recusei. Foi me seguindo pela praça, dizendo: “Quién es usted y lo que hace en mi país?”. Atravessei a rua e fui para a frente do El Pantanal. Lá estava um rapaz, também segurando a tal bebida. Sorriu para mim: “Él está borracho”. Sorri também. Falei que não sabia o que era que me ofereceram, mas queria apenas água. Ele bateu na janela do El Pantanal e, após alguns minutos, a dona brasileira apareceu. Entendi, então, o esquema de fura-greve... e comprei duas garrafas de água.

O borracho continuava me perseguindo. Não dei bola, sentei numa sarjeta e lá fiquei, saboreando a água. Ele continuou: “¿Hay Dios? ¿Sí o no? ¡Yo le pregunto! ¿Conoce Abraan? ¿Sí o no? ¡Yo le pregunto! ¿Abraan habló a Dios? ¿Sí o no? ¿Usted habló a Dios? ¿Que usted hace en mi país? ¿Es una profetiza? ¡Entonces profetiza conmigo! ¿Por qué no profetizas? ¡¿Por qué?!”. Uma senhora passou por nós, o borracho disse a ela: “Diós mandó una mujer para profetizar conmigo, ¡pero ella no profetiza!”. E começou a chorar. Depois mandou eu entrar “para adentro”, para que não me fizessem mal, porque preciso ser protegida, ninguém pode me tocar. E continuou em prantos.

Um soldado fardado observava a cena e aproximou-se de mim. O nome dele é Sérgio, é de Santa Cruz e está em San Matias para “servir a la Patria”. Diz isso com muito orgulho, com o patriotismo que parece ser característico de todos os bolivianos. Sugeriu que eu me afastasse dali, fosse para longe do borracho.  E voltou ao seu serviço.

Fui sentar do outro lado da praça e, felizmente, o borracho não me seguiu. Um velho andava devagar, parecia cansado, talvez dolorido. Um taxi passou, o velho fez sinal, chamou em voz alta. O taxista colocou a cabeça para fora do carro e gritou: “¡No se puede trabajar ahora!”. Paralização na Bolívia significa parar mesmo.

Igreja da praça

Cansei de olhar a praça e decidi voltar para o hotel. Quase chegando, ouvi alguém dizer: “Olá”, e não “Hola”. Olhei para o lado, era um rapaz. Brasileiro, morando em San Matias há 19 anos. Trabalha na clínica veterinária do irmão, vendem vacinas, ração, produtos para o gado. Puxou um banquinho, ficamos proseando na calçada. Foi um alívio achar alguém para conversar. Ele disse que era uma pena que eu já estava em hotel, porque poderia me oferecer a casa dele. Que se soubesse que eu era brasileira, teria me oferecido almoço na casa dele. Ofereceu-se para me acompanhar à casa de câmbio para trocar dinheiro, disse que ia me levar na que paga melhor.

Muito gentil, mas neste lugar não consigo confiar em ninguém. Malandro eu reconheço só de olhar nos olhos. Os brasileiros que estão aqui, de maneira geral, não inspiram confiança. Fico pensando o que fazem aqui, sendo que há tantas cidades de mesmo porte com melhor infra-estrutura de nosso lado da fronteira. Do que estão fugindo? O rapaz que conheci disse que aqui se pode ganhar dinheiro com o comércio, mas que tudo tem estado muito parado, por isso ele pensa em voltar ao Brasil no ano que vem. Sobre a paralização, explicou que é porque tacaram fogo numa ponte e agora as pessoas protestavam para que fosse reconstruída, mas usando um material melhor, como o concreto. No último “paro”, alguns comerciantes ficaram abertos. Desta vez, avisaram que se alguém abrisse loja, eles invadiriam e saqueariam, então ninguém se atreveu.

 A praça é o único lugar bonitinho da cidade

Apesar de gentil, o rapaz tentava me levar na conversa o tempo todo. Queria que eu desse meu dinheiro para ele trocar com uma conhecida, que pagaria mais pesos por meus reais. Ofereceu-se para ir sozinho de bicicleta até lá, levando a grana. Claro que recusei. Queria pegar o carro para me levar para jantar não sei onde. Recusei também. Por fim, perguntou se meu hotel tinha TV e sugeriu de ir comigo para o quarto “ver um filminho”. Respirei fundo, engoli o “vai pra puta que o pariu” (sabe-se lá se esse povo anda armado) e falei: “não quero, boa noite”.

Num lugar assim, o melhor que eu podia fazer é me trancar no quarto abafado e esperar a hora de ir embora. Era só dormir que acabava. Só uma noite. No dia seguinte, eu partiria para Santa Cruz e tudo ficaria bem. Deitei na cama com o laptop no colo, agradecendo por estar sozinha, mas depois de escrever umas poucas linhas, adormeci de novo, apesar de não ser nem 10h da noite. Mecanismo de defesa: eu não estava aguentando tanta tensão.

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

San Matias - Parte I

San Matias, 19 de outubro de 2010

Estou enfrentando a primeira dificuldade na viagem e tenho a impressão de que após sair dela, o resto será muito simples. Deitada na cama do hotel em San Matias, tento me distrair para esperar o tempo passar. A cidade toda está fechada, pouquíssimas pessoas nas ruas. Nenhum ônibus chega, nem sai daqui.

O que aconteceu? Também não sei com muitos detalhes. Parece que tem algo a ver com uma ponte que querem que construam em algum lugar entre San Matias e Santa Cruz de la Sierra. Como o governo não tomou providências, o povo se revoltou e bloqueou as estradas.

Para chegar até aqui, peguei um micro-ônibus em Cáceres, com destino a Corixa. Avisaram-me que o bloqueio aconteceria após meio dia. “Depois desse horário, ninguém entra e ninguém sai”, disse ele. “Mas dá tempo de passar pelo ponto de bloqueio antes disso?”, perguntei. “Dá, claro que dá tempo sim. O micro sai daqui 9h, tem tempo de sobra”. Arrisquei.

O ônibus já saiu meio atrasado. Parou para pegar e deixar muita gente no caminho. Diversidade de bagagens: sacolas de muamba, 30 kg de arroz, sacos enormes de ração para frango, uma sacola cheia de mangas, etc. Achei que trariam isso tudo para a Bolívia, mas depois percebi que a maior parte das pessoas fica nas fazendas no meio do caminho. Estamos na região do pantanal. Na estrada, eu via as áreas alagadas, garças pescando, e em volta delas pasto, gado. Uma fazenda atrás da outra.

Bolivianos e brasileiros conversavam em portunhol e comentavam que o acesso a Santa Cruz já estava fechado e talvez não desse nem para chegar a San Matias. Fui o caminho todo apreensiva. Quanto mais me aproximava da fronteira, mais a tensão aumentava.

Ruas de San Matias

Chegamos. De acordo com os passageiros e com diversos blogs que já li, muitos taxis costumam aguardar na fronteira para levar passageiros a San Matias, vilarejo que fica a 7 km de distância, onde é possível pegar ônibus para Santa Cruz. Além disso, San Matias também tem comércio e muitos mato-grossenses fazem compras aqui. Desta vez, nenhum táxi aguardava. Vi que as pessoas prosseguiam para além da fronteira caminhando e resolvi segui-las. Foi assim que saí de Mato Grosso da mesma forma que entrei: a pé e sem saber ao certo que rumo tomar.

Alguns metros para frente, ouvi: “vá a San Matias?”. O rapaz era taxista e ofereceu-se para levar-nos. O taxi estava parado logo depois do bloqueio. “Pero ellos van a dejarnos pasar?”. “Si, las personas son libres para ir y volver, solamente los carros están bloqueados”. De fato, passamos sem problemas pelo bloqueio. Entramos no taxi: eu, uma outra brasileira e dois bolivianos, além do motorista. Em vez de ir pela estrada principal, o taxista pegou uma estrada secundária, pelo meio do mato. Fiquei pensando que eu estava totalmente nas mãos dele. Não sabia ao certo onde estava, muito menos o caminho e ele poderia fazer o que quisesse. Mas havia remédio? O jeito era confiar. Chegamos a San Matias sem contratempos.

Acompanhei a outra brasileira, que já tinha estado aqui uma vez, para chegar ao centro, onde o taxista estava proibido de passar. Comércio fechado, ruas vazias. A moça veio para fazer compras e não houve outra alternativa a ela, senão voltar ao Brasil sem as mercadorias. Ela ficou menos de meia hora na cidade. Disse: “aqui a gente não tem proteção nenhuma, não me sinto bem. Vou ver se acho aquele taxista, se ele me leva para a fronteira de novo. O micro só sai 2h da tarde (eram mais ou menos 11h), mas prefiro esperar lá, me sinto melhor estando entre brasileiros”.

Migración cerrada

Entendi perfeitamente o que ela dizia. A atmosfera da cidade era ameaçadora. Tudo fechado, as poucas pessoas que passavam nos lançavam olhares estranhos. Não achei nada aberto, nem mesmo um bar, uma padaria. Paralização, na Bolívia, significa parar mesmo! Senti vontade de voltar também, mas algo em mim falou mais alto: se vim até aqui para conhecer a Bolívia, é preciso aproveitar cada oportunidade. Mesmo que seja para conhecer um vilarejo minúsculo como este. Resolvi ficar até aparecer o primeiro ônibus para Santa Cruz. Arranjei um hotel, aquele que me pareceu menos sujo e detonado. O que não quer dizer que seja limpo e arrumado, longe disso. Não tem toalha, as roupas de cama meio encardidas parecem ter sido compradas há 50 anos numa loja de segunda categoria. Mas tem banheiro no quarto, com chuveiro frio, o que não chega a ser um problema graças ao sol escaldante daqui.

Prefeitura de San Matias


O próximo desafio foi arranjar o que comer. A cidade inteira fechada, nenhum restaurante, nem mesmo um boteco. Supermercados, farmácias, igrejas, lojas... tudo fechado! Eu já estava ficando meio tonta, quase desistindo. Tinha apenas uma garrafa de água, sabia que passaria sede se ficasse lá, porque nem água tinha como comprar. Estava quase desistindo, querendo voltar para Cáceres e ver se teria mais sorte no dia seguinte. Foi quando um taxista me abordou: “Quieres un taxi?”. Não sei qual foi a parte minha que respondeu: “No, gracias. Quiero solamente comer alguna cosa. Usted sabe dónde puedo comer algo?”. “El centro está todo cerrado. Pero usted fue a El Pantanal? Es un restaurante en la plaza 22 de Septiembre. Yo no sé si también está cerrado.” Fiz minha última tentativa. Se não funcionasse, estava decidida a ir a Cáceres. Mas, seja isso bom ou ruim, El Pantanal estava com a porta entreaberta. Parei, olhei lá dentro e vi um buffet cheio de comida. O restaurante é uma churrascaria cujos donos são brasileiros, portanto a comida era próxima da que estou acostumada. Passava longe de ser a melhor comida do mundo, mas comi muito! Pela fome e por não saber se encontraria algo para comer mais tarde.

Incrível como a fome altera a cabeça da gente. Depois de comer, consegui ficar calma o suficiente para observar a cidade. Fui à praça, vi que ela até que é bonitinha. A igreja tem um padrão todo rústico, interessante. Mas por pura falta de fazer, voltei para o hotel para escrever um pouco, relatar essa nova e assustadora experiência. Adormeci.

Notícias

Estou em Cuiabá, no Albergue Portal do Pantanal (http://www.portaldopantanal.com.br/). Amanhã pretendo conhecer o Pantanal ou a Chapada dos Guimarães, vamos ver o que vai rolar.

Gostaria de aproveitar para divulgar um interessante site de notícias e reportagens sobre a região do Roncador, o Água Boa News. Vejam na Tag "Aventuras" notícia sobre esta viagem: De São Paulo ao Peru passando pela Serra do Roncador. Só não reparem nos exageros jornalísticos rs...

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Recalculando a rota


Tenho muita coisa a contar após a passagem por Água Boa e a confusão dos horários. Passei por Cuiabá, andei um pouco no centro histórico, tirei fotos. Vim a Cáceres e, enfim, segui para Corixa, fronteira com a Bolívia. De lá fui a San Matias, de onde eu deveria pegar um ônibus a Santa Cruz de la Sierra. Deveria.

O povo se revoltou na Bolívia, devido a uma certa ponte que estava em péssimas condições, perigando cair e matar quem estivesse em cima. Botaram fogo nela e estão exigindo que o governo invista em uma nova ponte. Por isso fecharam todos os acessos a Santa Cruz, fizeram "bloqueos".

De qualquer maneira, cheguei a Corixa, fronteira entre Brasil e Bolívia. Saí do Mato Grosso da mesma maneira que entrei: a pé. Passei pela fronteira, cruzei o bloqueo (vale apenas para carros, não para andarilhos). Precisava ir a San Matias, que fica a 7 km de lá. Já estava achando que teria que andar tudo isso a pé, quando um taxista se ofereceu para levar-nos (eu e outras 3 pessoas).

Chegando lá, foi um susto. O povoado todo fechado. TODO. Inclusive restaurantes, farmácias, padarias, bares. A migración também estava fechada, não tinha como obter a permissão para ficar no país. Disseram-me que era uma paralização ("el paro") de 24 horas e que certamente se resolveria no dia seguinte. Resolvi dormir lá e pegar ônibus para Santa Cruz na próxima manhã.

Não foi fácil. A cidade tem uma energia pesadíssima. Poucos hotéis (e ruins). O povo todo querendo me passar a perna na troca de moeda. Homens nojentos me olhando com cara de "quero te comer". Aliás, comer era um problema, porque tudo estava fechado. Não tinha nem onde comprar água. Vou relatar com mais detalhes em outros posts essa minha rápida estada em San Matias, que no entanto parece ter durado muito tempo.

Resumindo, a greve continua hoje e voltei a Cáceres. Nem isso foi fácil, porque os táxis não estavam operando. Acabei conseguindo convencer um motoqueiro a me trazer, em troca de alguns bolivianos. E vim de moto, 7 Km de estrada de terra, com uma mochila de 10 Kg nas costas e outra de 2Kg pendurada na frente, sem capacete (proteção é coisa de brasileiro).

Aliviada por pisar em solo brasileiro e sair da zona de conflito, fiquei aqui repensando a rota. Decidi não entrar de novo na Bolívia. Além do trauma, tenho que pensar no tempo, que agora é curto. Foram muitos atrasos. E também seguir a intuição, que me manda passar longe desse lugar por enquanto. Fica para a próxima...

Vou para Cuiabá daqui a pouco, pegarei um avião para Rio Branco (AC). Lá vou visitar meus parentes (sim, tenho parentes no Acre), ver a cidade por onde não ando desde 1998. Em seguida, parto de ônibus para Cuzco. A volta está prevista para 29/10, com conexão de 12h em Lima (vou poder passear lá também). E chego em São Paulo dia 30, a tempo de votar.

Estou meio frustrada por não conhecer a Bolívia desta vez, mas numa viagem como esta é preciso estar pronta para imprevistos e, consequentemente, adaptações.

Assim que possível mando a vocês o relato completo da minha (terrível) experiência em San Matias, inclusive com as fotos.

terça-feira, 19 de outubro de 2010

Água Boa


Para ir de Canarana a Cuiabá, peguei uma linha em que é preciso fazer baldeação em Água Boa. Na passagem, estava escrito que o ônibus saía de Canarana às 17:00, mas a moça do guichê me avisou que isso, na verdade, quer dizer 16:00.


- Nós seguimos o horário de Brasília, mas não entramos no horário de verão, então como Brasília entrou hoje no horário de verão, nós estamos com 1h a menos que eles.


Certo. Peguei o ônibus 16h, cheguei em Água Boa 17:30. Na passagem, estava marcado que o ônibus para Nova Xavantina sairia 18:00. Dúvida: isso quer dizer 18h mesmo ou 17h? Perguntei ao motorista.


- Como é horário de verão, acho que sai 17h.
- Acha?!
- Não, é, sim, sai 17h.
- Mas são 17:30. Como faz?
- Ah, então deve ser 18h.
- Deve ser ou é?!
- Peraí, moça, deixa eu ver...


Chamou um colega.


- Moça, sai 18h mesmo.
- Certeza?!
- Certeza.


Um ônibus com letreiro "Cuiabá" estacionou às 17:45. Levei a passagem até o motorista.


- Moço, por favor, é esse o ônibus que tenho que pegar?
- É esse sim.
- Que horas ele sai?
- 19:40.
- Ué, mas aqui está escrito 18h.
- Não, sai 19:40.
- Mas é esse mesmo meu ônibus?
- É sim. É que 18h ele sai de Brasília, eu acho.
- Impossível. Como chegaria em Água Boa em apenas 1h?
- Ah, não sei, mas esse é seu ônibus e ele sai 19:40.
- Tá bom. Tem certeza, né?
- Tenho sim.
- Então faz favor, guarda minha mala aí no porta-malas.


Quem me conhece deve imaginar que eu não ficaria parada na rodoviária por mais de 1h sem fazer nada. Resolvi andar por Água Boa. Se fosse Canarana, daria pra conhecer a cidade toda em 1h (rs), mas Água Boa é maior. Não encontrei nem o centro da cidade, fiquei só nos bairros perto da rodoviária. O melhor que vi, reproduzo abaixo:


Pôr do sol em Água Boa




Ass de Deus! (E a minha amiguinha Josicleide, de 7 anos, sentada na calçada)





Fui andando pela cidade, mas alguma coisa me incomodava. Eu não sabia se era fome, vontade de fazer xixi, ou outra coisa além, ou tudo junto. O fato é que voltei para a rodoviária pensando em comer alguma coisa e ir ao banheiro antes de viajar. E encontrei o ônibus já buzinando, quase saindo. Falei com o motorista:


- Que horas sai este ônibus?!
- Daqui 5 minutos.
- O senhor não me disse que sairia 19:40?! São 18:35!
- Então, mas são 19:35 no horário de Brasília.


Você entendeu? Nem eu. O que descobri é que existem pelo menos três horários em vigor na região do Vale do Araguaia:


1) Horário de Cuiabá: é o horário oficial da região, mas só o fórum segue.
2) Horário de Brasília, sem entrar em horário de verão: é o que a maioria das pessoas segue.
3) Horário de Brasília, entrando em horário de verão: é o que os bancos seguem.


As pessoas da cidade já se acostumaram com isso, mas eu nunca conseguia saber que horas eram, porque dependia do referencial. Realmente, esse lugar é de outro mundo...

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Canarana


Esse é o post mais difícil até agora. Canarana não tem nada em termos de pontos turísticos, mas foi tudo tão intenso que estou aqui pensando: como relatar o indizível?

Desde que cheguei no Roncador, tenho ouvido várias perguntas, repetidamente:

- De onde você é?
- Está viajando sozinha?!
- Mas quantos anos você tem?! É di menor?
- Seus pais SABEM que você está aqui?
- Você brigou com sua família? Fugiu de casa?

Essas conversas costumam terminar com um suspiro: "Queria ter essa sua coragem...".

Outra pergunta que ouvi muito:

- Mas por que decidiu vir AQUI, em Barra do Garças / Nova Xavantina / Canarana?

Essa eu não sabia responder, não... Principalmente Canarana. Tinha alguma coisa na cidade que me atraía, mesmo sem eu saber nada sobre ela. Alguma coisa no nome, eu acho. E foi por isso que resolvi ir, mesmo as pessoas me dizendo que lá não tem nada, que era melhor ir a Água Boa ou Campinápolis.

Desci do ônibus às 17:30 e vi o pôr do sol mais lindo da minha vida. Na hora pensei: "É isso... eu vim pra ver este Sol". Deixei as malas no hotel Ipê, atrás da rodoviária, e saí andando na direção do poente. Duas quadras depois, as ruas eram de terra vermelha, com casebres de madeira, jaqueiras, cajueiros, mangueiras, pássaros, galinhas, cachorros e gatos. Crianças brincando, encardidas como toda criança saudável deve ser. E o Sol descendo à terra, vermelho-púrpura-alaranjadamente, incendiando o horizonte. Parei junto a uma cerca, respirei. Só quando o céu já estava azul marinho, com as primeiras estrelas aparecendo, é que resolvi voltar.

Foi então que resolvi acionar um dos meus contatos: um dos rapazes que conheci em Barra do Garças. Ele na mesma hora foi me encontrar, marcamos de tomar cerveja num bar lá da cidade. Outros rapazes foram conosco, todos de Canarana. Conversamos e bebemos até de madrugada, cheguei no hotel meio tonta já... Entendendo um pouco do pensamento de quem mora lá.

No dia seguinte, depois de beber litros de água, saí de novo sozinha, vendo a cidade pela manhã. Toda planejada, perfeitamente quadrada, quarteirões de 100m por 100m. Avenidas tão largas quanto aquelas da USP, mas quase sem carro nenhum. É bonita, mas seus maiores encantos se revelam, de fato, na hora da Ave Maria.

Satisfeita com minhas primeiras impressões, senti que deveria acionar um outro contato: os amigos do amigo, sabe? E foi a partir deles que descobri outras respostas para a pergunta: o que você veio fazer aqui, em Canarana? Em uma tarde de conversas as coisas passaram a fazer sentido, ligaram-se umas às outras. Até aqui eu tinha considerado minha viagem como duas etapas separadas: 1- conhecer o Roncador; 2- conhecer Bolívia e Peru. De repente, em Canarana, descobri que o caminho é um só, que as coisas se ligam, o trajeto todo é único e precisava, mesmo, ser feito dessa forma.

Eu precisaria de muitas palavras para relatar os acontecimentos desse final de semana, então deixa pra lá. Melhor fazer isso tomando um café, olhando o Sol ou a chuva bater na janela. Foram muitas sincronicidades em dois dias: muitos encontros. Encontrar o que está fora nada mais é do que reflexo de encontrar o que está dentro e, então, sigo meu rumo me sentindo mais inteira.

Foi difícil entrar no ônibus para sair de Canarana, minha vontade era de ficar lá, reconstruir tudo lá e seguir a vida. Enfim, hora de tocar o barco, ainda tem muito chão pra percorrer. Estou em Cuiabá, esperando o comércio abrir. Daqui a pouco vou colocar 1/4 da bagagem no correio, rumo a Campinas, para viajar mais leve. Tentar comprar o cabo da câmera, para quem sabe poder mostrar a vocês algumas fotos do bonito pôr do Sol que pude presenciar. Por fim, seguirei para Cáceres, de onde, mais tarde, irei à Bolívia.

sábado, 16 de outubro de 2010

Trilha pela Serra do Roncador


Vale dos Sonhos, 12 de outubro de 2010

Andar pelo Roncador foi uma atividade cansativa (mais do que pensei), mas também gratificante. Fizemos a trilha que vai da fazenda do Maurinho até as Torres Gêmeas (não coonfundir com WTC, eu já disse...). O caminho é variado, alterna entre regiões íngremes e outras nem tanto, pontos com muito sol e outros de sombra. Passamos por fendas nas rochas, ladeadas por grandes paredões de pedra. Tomei quatro picadas de marimbondo. Mas tudo era tão mágico, que até os pequenos imprevistos faziam parte do processo. O que valia era estar lá, sentir o lugar, ouvi-lo, tocá-lo.

Passando por uma das fendas entre os paredões de pedra


Vários trechos da trilha estão completamente queimados. O fogo alastrou-se pela serra e fez um estrago considerável. Toda a trilha cheira a fogo: nos vestígios de queimada, no sol torrando nossa pele, no tom encarnado das rochas, nas picadas de marimbondo ardendo em fisgadas, nas penas das araras vermelhas, na fumaça que subia do vale indicando novos focos de queimada. Passei muita sede até encontrar uma nascente onde pude encher minha garrafinha novamente.

Em vários paredões de rocha há marcas esculpidas na pedra, em forma de mãos, patas, animais. Sítios arqueológicos que, até onde sei, pesquisadores ainda não se ocuparam de estudar.

Quando parávamos para descansar e ficávamos em silêncio, vinha a paz. A música da montanha, novamente. A sensação de unidade com tudo o que estava ali. Lá no alto, numa plataforma de pedra, avistamos as torres e todo o vale lá embaixo. Araras sobrevoavam o vale, sempre aos pares. Um calango tentava se aproximar de mim o tempo todo. Conversamos, rimos, ficamos em silêncio em vários momentos e tudo era serenidade.

Cheguei nas Torres Gêmeas


Na volta nadamos na represa, foi um alívio equilibrar tanto fogo com alguma água no corpo, ainda que fosse água quente de tanto sol armazenado ao longo do dia. E agora estou na rodoviária de Vale dos Sonhos, observando galinhas e arara (uma arara vermelha pousada no telhado, parece que é amiga do povo daqui), aguardando o ônibus que me levará a Nova Xavantina, onde se inicia a próxima etapa da viagem.

Vou com a certeza de que volto em breve, há ainda muita coisa para se conhecer, sentir e viver por aqui. Sinto que neste trajeto, estou desbravando, abrindo caminhos, preparando as trilhas que percorrerei muitas vezes ainda, nessa nova fase de minha vida que se abriu tão de repente. Aqui, tão longe de casa (seja lá o que chamo de casa neste momento), sinto-me de coração sinceramente aberto ao que vier. Sem medo de me jogar no mundo, porque sei que ele me suporta e me acolhe, seja lá como for.

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Nova Xavantina


Que dizer de Nova Xavantina? Ainda não consegui assimilar minhas impressões desta cidade. Sigo hoje para Canarana, de lá vou direto a Cuiabá, depois Bolívia.

No primeiro dia, senti muita preguiça, muita moleza. Com o calor ardido que estava, a pressão caiu, senti tonturas. Nem por isso deixei de passear a pé. Também tenho dormido muito comparado com o habitual (cerca de 8 horas por noite, sem acordar nenhuma vez).

A cidade divide-se em dois lados, unidos pela ponte sobre o Rio das Mortes: o lado legal e o lado normal. O lado normal tem o centro da cidade, o comércio. O lado legal tem as casas mais antigas, os monumentos históricos, a praça com o marco de fundação da cidade, o templo da Sociedade Brasileira de Eubiose. Andei pelo comércio de manhã. À tarde fui à Praia da Lua, no Rio das Mortes, nadei um pouco no rio. Nada como água para apagar tanto fogo! Também existe a Praia do Sol, que fica do outro lado, mas nessa eu não cheguei a ir. Depois fui andando e fotografando os monumentos históricos.

Praia da Lua


Finalmente, fui ao Templo da Eubiose. Cheguei lá 17:57, com um vendaval espalhando folhas para todos os lados. E lá senti como se eu tivesse esperado muito tempo para chegar a esse lugar, mas ao mesmo tempo o lugar parecia estar me esperando. O céu foi escurecendo, o pôr do sol avermelhado como sempre. Um temporal se armando e a natureza toda se movimentando. Garças, outros pássaros, algumas pacas correndo pelos canteiros. Árvores balançavam fortemente. Raios bem definidos, cortando o céu, trovões bastante fortes. Abriguei-me junto à porta do templo, no único local coberto que encontrei e lá fiquei, observando a água caindo e diversos fenômenos estranhos. O chão queimando meus pés, apesar de já estar mais fresco por causa da chuva.

Templo da Sociedade Brasileira de Eubiose em Nova Xavantina


Ontem o dia parece ter sido mais dedicado a conhecer as pessoas. O que posso dizer é que são sempre valentes, desbravadoras. Quase todos chegaram aqui vindo de outros lugares. Normalmente, moraram em diversas casas e cidades, o que me faz pensar que estou no grupo de risco rs... E muitos que vêm morar aqui partem em pouco tempo para outros lugares.

A impressão que tenho do lugar e das pessoas é de que tudo é bastante volátil. Nada fica estagnado, caso contrário leva logo um empurrão. Há um constante movimento, que não pode parar. É um fluxo constante, moto contínuo. Estando aqui, sinto que também entro nesse ritmo e vou entendendo um pouco mais os acontecimentos deste ano.

Céu


Vale dos Sonhos, 12 de outubro de 2010

Tudo saindo como previsto, justamente porque nada estava planejado.

À noite, após o jantar, todos foram dormir e eu fiquei acordada sentada na varanda, encantada com as estrelas. Todas as luzes apagadas, até a lua já havia se escondido por detrás da Serra do Roncador. Muitas estrelas cadentes passam por aqui. É só não ter pressa nem ansiedade, que elas surgem.

Tainara, moça de 17 anos que trabalha cuidando daqui, estava comigo. Conversávamos sobre a vida. Rimos de alguns turistas que têm medos estranhos: de onça, de alienígenas, discos voadores. Tainara disse que nunca viu disco voador e, se existir, prefere não ver. Eu disse que se um dia quiserem aparecer, podem vir, mas não vou procurá-los porque acho que eles têm mais o que fazer do que se exibir para mim.

Foi quando uma das estrelas da constelação de Órion se mexeu. Saiu do lugar, para cima e para baixo, para um lado e para o outro. Avião? Satélite? Nada condizia com aquele movimento. E eu cética, tentando encontrar uma explicação cientificamente provável. Fechei e abri os olhos, esperando que desaparecesse, como a cidade que eu havia visto sobre a serra ao voltar do mundo dos sonhos. Nada, ainda estava lá, piscando, se mexendo. Olhei para outra estrela, esperando que também se mexesse, que fosse ilusão de ótica. Nada. Acabei mostrando a estrela à Tainara, que também custou a acreditar no que seus olhos lhe mostravam. E ficamos pensando que seja lá o que fosse aquela estranha aparição, pagamos nossa língua ao rir dos turistas. Era literalmente um OVNI: objeto voador não identificado. Não tenho conhecimento suficiente para arriscar um palpite do que era aquilo, mas era a coisa mais próxima do que chamam de disco-voador que já avistei.

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Cachoeira no Roncador


Vale dos Sonhos, 11 de outubro de 2010

Cheguei em Barra do Garças sem saber o que encontraria por lá, sem saber nem mesmo onde eu estava. E na primeira noite, a moça que vendia seus livros de poesias abriu-me as portas, em pleno boteco, em meio à cerveja. Encontrar o Maurinho é um acontecimento desses que só a Causalidade proporciona. Sinto-me em casa, acolhida, como se já conhecesse essas pessoas há muito tempo.


Visão parcial da cachoeira na Serra do Roncador


Seu José e Dona Tereza são fantásticos. Sempre imaginei como vive uma pessoa que mora numa dessas casinhas de beira de estrada, longe de tudo, e agora vejo o que é. Tudo simples demais e, ao mesmo tempo, sei que eu jamais daria conta de viver assim. Seu José e Dona Tereza sempre têm um sorriso sincero nos olhos e nos lábios. São lindos pela alegria que transpiram, que compartilham.

A cachoeira cai do alto da serra, de uma altura de pelo menos 80 metros. A água é de um gelado revigorante. O sol batendo em vários ângulos sobre a serra revela novos desenhos e matizes a cada instante. Uma visão que nunca é a mesma... Deitei numa rocha e fechei os olhos, sentia o sol ardendo na pele. Percebi que o Roncador tem uma música, uma sinfonia lindíssima. Pássaros de várias espécies cantavam orquestrados, como se obedecessem a um regente invisível. Havia o som das águas e dos ventos acrescentando dois outros instrumentos à composição. Sinfonia que se renova a cada instante, nunca se repete. Não é possível gravar, a não ser na memória.


 Foto espontânea: eu observando a cachoeira


A comida de Dona Tereza tem sabor de carinho. Tudo feito na hora, muita coisa produzida lá mesmo, galinhas passando pelo meio da cozinha. Patos, vacas, cachorros, gatos, porcos, tudo junto em harmonia, num equilíbrio dinâmico, que torna o acontecimento quase onírico.

Seu José e Dona Tereza parecem simplesmente saber de que as pessoas precisam e oferecem de bom grado. Como a rede pendurada num pé de manga, que Dona Tereza me ofereceu logo depois do almoço. Deitei e fiquei vendo o paredão de rocha, cochilei. Antes de embarcar no sono, pensei: estou aos pés de um Templo vivo, natural. Acordei ouvindo um porquinho fuçar o chão procurando manga. Filhotinho, o menor porco que já vi. Abri os olhos devagar e vi uma cidade no topo da serra. Casinhas simples, feitas de pedra. "Devo estar sonhando". Fechei os olhos e, quando abri de novo, era só a serra, nada de cidade.




O cachorro de Seu José e Dona Tereza, que nos acompanhou na trilha, também curtindo a cachoeira


O pôr do sol, que vi ao longo da estrada, é completamente vermelho. Parece que toda a terra vai pegar fogo. Aliás, toda aquela região cheira a fogo. É tudo Ara... Aragarças, Araguaia, arara, Ararat...

Também ao longo da estrada, tivemos que reduzir a velocidade do carro porque uma ema corria na nossa frente. Surreal!

Estou de volta à fazenda de Maurinho, está anoitecendo e não há luz por aqui. As estrelas aos poucos vão cobrindo todo o céu. A lua está grande, perto da serra.

Nada disso estava nos meus planos. Eu não imaginava vir para cá. Sinto que há um caminho que imagino e outro que vai além de mim, que me chama e me consome. A viagem que programei é uma rota que não tem um fim certo. Em cada pedacinho percorrido já encontro o Fim. Há respostas em todos os lugares. Está tudo saindo como previsto, justamente porque nada estava planejado.