sexta-feira, 13 de maio de 2011

A higieni(opoli)zação das cidades

A mais recente grande mobilização no Facebook é o Churrascão dos Diferenciados, em Higienópolis. O motivo do movimento é a recente decisão do Governo do Estado de São Paulo de alterar o local de uma futura estação de metrô, que seria construída na Avenida Angélica, em Higienópolis, cedendo à pressão de moradores, que assinaram um documento formalizando seu desagrado.

Até às 21:40 do dia 12 de maio de 2011 (momento em que escrevo estas linhas), 50.255 pessoas confirmaram presença no Churrascão Modificado (pois o evento do churrasco foi transformado numa manifestação beneficente na praça Vilaboim). Muito mais que os 3.500 moradores de Higienópolis que assinaram o documento posicionando-se contra a estação.

Sou usuária do transporte público e defensora do direito das pessoas circularem por aí da forma mais fácil e menos custosa aos bolsos e ao meio ambiente. Mas hoje, em vez de engrossar o coro dos que defendem o metrô da Av. Angélica, vim apenas falar – mais uma vez – da sombra da cidade.

Convite para o Churrasco da Gente Diferenciada

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Em entrevista à Folha de São Paulo, a psicóloga Guiomar Ferreira disse: "Eu não uso metrô e não usaria. Isso vai acabar com a tradição do bairro. Você já viu o tipo de gente que fica ao redor das estações do metrô? Drogados, mendigos, uma gente diferenciada...". (A profissional envergonha a minha categoria.)

Há também a advogada Anna Claudia de Salles, presidente do Conseg (Conselho Comunitário de Segurança) de Perdizes/Pacaembu, bairro que provavelmente vai abrigar a estação, no lugar de Higienópolis. Essa ilustre senhora disse: "Infelizmente, seremos mais abordados por pessoas flutuantes.".

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– Oi, Gabriela. Eu queria saber se você poderia acompanhar a assistente social em uma abordagem social que precisa ser feita com urgência. O diretor do museu se queixou das pessoas em situação de rua que têm ficado lá. A prefeitura solicita que o CREAS atue.

– Mas eu vou lá para fazer o quê? Pedir para se retirarem? Eu, psicóloga, pedir para as pessoas saírem de um local público? Que direito ou que dever eu tenho de fazer isso?

– Não, não é isso... Vocês só tem que conversar com eles, sugerir que venham ao nosso serviço, para pensarem em alternativas para sair das ruas... O de sempre, sabe?

– Alternativa? Que alternativa eles têm? O que eu posso oferecer a eles de melhor? Não existe um espaço para eles, albergue, república, nada! Eles vão chegar aqui, vão conversar, depois vão voltar para a rua, para o museu, para qualquer outro lugar.

– Não, não é isso... Vá apenas para ver quem está lá, se já está cadastrado em nosso serviço. E ofereça atendimento, fale que estamos aqui para apoiá-los, essas coisas... Veja, é que instâncias superiores estão solicitando...

– Tudo bem. Eu vou. Mas não vou dizer para ninguém sair de lá!

– Certo, fique tranquila, não é isso que estou pedindo a vocês.

– Quem vem nos buscar? Fiquei sabendo que um motorista está de licença médica, o outro se recusa a fazer abordagem social e o outro está levando alguém para uma reunião em outra cidade.

– A Guarda Municipal vai buscar vocês.

– A Guarda Municipal?!! Mas assim fica complicado! Temos tido muito trabalho para desvincular nossa imagem da guarda municipal. As pessoas que atendemos se queixam de sofrer violência por parte da guarda. São papeis que não podem se misturar!

– Peça para os guardas ficarem distantes. Eles só têm que levar vocês até lá, não precisam ir com vocês abordar as pessoas. Diga para ficarem longe, e vocês vão procurá-los quando acabarem a abordagem.

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Em poucos minutos, uma Kombi da prefeitura estacionou na nossa porta. Respirei mais aliviada quando vi que não era uma viatura da GM, nem tinha qualquer coisa escrita que indicasse vínculo com a GM. Entrei no veículo com a assistente social, carregando um caderno, uma caneta e alguns papeis com o endereço do CREAS.

O problema é que eu sentia que nada disso ia adiantar: a maioria das pessoas em situação de rua já frequentava nosso serviço. Provavelmente, daríamos de cara com nossos velhos conhecidos. E eu ficava imaginando o que poderia dizer. “Oi, tudo bem? Sua noite foi boa? Quer um marmitex?”.

Entramos no museu e não havia nada de diferente. Apenas alguns funcionários limpavam o local. Não encontramos sequer um visitante.

– Por favor, senhora... Nós gostaríamos de falar com o diretor do museu.

– Ele não se encontra no momento.

– Disseram que havia algumas pessoas em situação de rua aqui...

– Ah, sim! Estava um monte de gente aqui hoje cedo, a maior bagunça! Uma sujeira danada! Eles dormem aqui, usam droga, largam seringa jogada, mijam e cagam no chão... Depois que foram embora, sobrou um monte de coisa, até calcinha tinha ali, pendurada na cerca! Vocês são da prefeitura? Olha, tem que vir cedo, umas 6h da manhã, daí vocês pegam eles! A prefeitura têm que fazer as coisas direito, eu morro de medo, tem uns aí que têm doença, AIDS... Vai passar pra gente, que trabalha aqui!

– Então eles já foram, senhora?

– Já foram, mas vem amanhã bem cedinho, umas 6 ou 7 horas, que vocês pegam eles! A prefeitura tem que fazer alguma coisa! Eu acho que tem que ser assim: quem não é da cidade, manda embora! Faz que nem antigamente, bota dentro de uma Kombi e solta em Itatiba! Acaba logo com o problema!

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Enfiar numa Kombi e soltar em Itatiba acaba logo com o problema... Não foi a primeira vez que ouvi isso. Nos grupos de pessoas em situação de rua, os que estavam nessa condição há mais de dois anos sempre falavam de operações feitas pela guarda municipal e por uma suposta assistente social (pelo que apurei depois, era uma funcionária comissionada que, definitivamente, não era assistente social). Nessas ocasiões, eles eram obrigados a entrar numa Kombi que os deixava na divisa dos municípios de Valinhos e Itatiba. A informação foi confirmada por diversos funcionários da assistência social da cidade. Disseram-me que uma vez, isso saiu no jornal.

Cerca de um ou dois anos atrás, foi surgindo uma nova forma de atendimento e as operações para levar pessoas em situação de rua para Itatiba foram encerradas. Mas muitos ilustres moradores do município de Valinhos ainda acreditam que essa é a melhor solução para deixar as pessoas de bem livres de “mendigos”, “pedintes”, “indigentes”.

Se não fosse tão politicamente incorreto, diriam que o melhor seria haver na cidade uma câmara de gás.

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Pessoas diferenciadas, pessoas flutuantes, pessoas em situação de rua... São eufemismos que deixam o preconceito ainda mais evidente. Lendo as falas da psicóloga e da advogada de Higienópolis, transcritas com aspas, vejo a Sombra da Cidade, desta vez em São Paulo.

As pessoas estão aí, sejam cobertas de luz ou de sombra. Um mendigo, um indigente, um pedinte, uma pessoa diferenciada ou flutuante, um drogado, um camelô, um vendedor ambulante, é também um pai, um trabalhador (normalmente desempregado), um doente e, acima de tudo, um ser humano.

É muito mais conveniente esconder a sombra do que olhar para ela, não é mesmo? Pega o que é sujo e joga fora, limpa, higieniza, tira do alcance do olhar. Mas é justamente dessa maneira que ficamos cada vez mais presos por detrás de muros, cercas eletrificadas, alarmes e vidros com insulfilme, enquanto “pessoas diferenciadas” reivindicam – e confiscam para si – a liberdade.

Enquanto a solução for transportá-los para a cidade vizinha ou mudar de local uma estação de metrô, estaremos apenas deslocando o problema social, temporariamente. Sim, temporariamente, pois como disse um senhor que esmurrou a porta do CREAS durante uns três dias, “Daqui a Campinas eu vou até de joelhos!”. Ou seja, as pessoas se deslocam, mesmo que seja a pé – ou de joelhos.

Aos ilustres moradores de Higienópolis e de Valinhos, ou de qualquer lugar, eis um desafio: encontre uma pessoa flutuante e diferenciada. Converse com ela. Pergunte sobre sua vida. Olhe nos olhos dela enquanto ela fala, mesmo que todo o discurso pareça completamente sem sentido. E agora? Você ainda é o mesmo? Essa experiência foi um diferencial na sua vida?

quinta-feira, 12 de maio de 2011

Encontros e reencontros - Parte IV

[Texto escrito em 11 / 05 / 2011]

Quando a gente lança uma pergunta ao Universo, Ele responde. É preciso ficar atento, porque a resposta pode estar em qualquer lugar: no trecho de um livro que você pegou por acaso na estante, num e-mail desses de corrente que um amigo chato mandou pela internet, na conversa com um colega de trabalho, no mendigo que te abordou na rua, nas reações do corpo em termos de adoecimento e cura, num sonho, num assalto... em qualquer lugar, sem exceção!

No dia 11 de abril de 2011, lancei a pergunta: "Como é que posso deixar de lado a minha consciência, a minha individualidade, para me tornar o Todo?". (ver Encontros e reencontros - Parte III)

A resposta foi rápida, pois o Universo não tem pressa e também não tarda. E foi simples, porque tudo no mundo é muito mais fácil do que parece. E se escrevo agora, após exatos 30 dias, é porque eu mesma levei tempo para assimilar.

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A primeira parte da resposta veio através do amigo Aluysio Robalinho, que tomo a liberdade de citar, mesmo sem ter pedido permissão:

"Será mesmo preciso abdicar da consciência individual para penetrar no todo? (ou deixar que ele nos penetre?)... Se a espiritualidade de que falamos é quântica... há possibilidade de manter as duas consciências (individual e universal, part...ícula e onda, como na luz) íntegras... Os orientais dizem que há várias espécies de Samadhi... e se não me falha a memória, o "samadhi da forma" permite que vc. mantenha os limites da consciência particular, o que, no fundo, não vem a ser outra coisa senão o que veio a se chamar "avatara individual"..."

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Também chegou um email, quase que ao mesmo tempo. Continha dois anexos, duas versões de um mesmo documento, que não cheguei a abrir naquela noite, porque já estava muito cansada e sem condições de pensar em mais nada.

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TRATADO DE LA UNIDAD

IBN ARABI (traducido y comentado por Roberto PLA)


¡Gloria a Allâh, ante cuya Unidad no hay nada anterior, si no es Él, que es el Primero! ¡Gloria a Allâh, después de cuya Singularidad no hay un después, si no es Él, que es el Siguiente!

Con relación a Él no hay antes, ni después; ni alto ni bajo; ni cerca, ni lejos, ni cómo, ni qué, ni donde, ni estado, ni sucesión de instantes, ni tiempo, ni espacio, ni ser. Él es tal como es. Él es el Único sin necesidad de la Unidad. Él es lo singular sin necesidad de la Singularidad.

Él no está compuesto de nombre, ni de denominado, porque Él es el nombre y el denominado. No hay nombre salvo Él. No hay denominado salvo Él. Por ello se dice que Él es el nombre y el denominado.

Él es el Primero sin anterioridad. Él es el Último sin posterioridad. Él es Evidente sin exterioridad. Él es Oculto sin interioridad. Porque no hay anterior, ni posterior; no hay exterior, ni interior, sino Él.

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Sonhei que estava prestando vestibular. Estava em uma sala da Unicamp, com muitos candidatos, entre eles meu namorado, que também faria prova. Não sei que curso desejávamos, mas era o mesmo. As paredes da sala eram revestidas de pedra.

No primeiro dia de prova, fomos estimulados a escrever nas paredes da sala com canetinha. No segundo dia, entrei na sala e vi uma espécie de grafite nos azulejos, acima da lousa, que não estava lá no dia anterior... uma frase escrita com caneta de quadro branco. Não lembro qual era a frase, mas lembro que me fez um sentido enorme, parecia que era algo para eu meditar neste momento da minha vida. E no final da frase, havia uma assinatura em letras maiúsculas: o nome completo do amigo que me mandou por email o Tratado de la Unidad!

No sonho, fiquei meio cismada, porque eu não tinha contado que ia prestar vestibular. Pensei: o que esse cara tá fazendo em Campinas? Como descobriu que eu estaria aqui?! Como entrou nesta sala?!!! Como é que ele pode estar tão envolvido na minha vida, sendo que eu nem o conheço pessoalmente? Depois descobri que ele estava em Campinas há alguns dias, dormindo na estação de trem.

Chamaram-me para ajudar a entregar as provas para os outros candidatos. Para isso eu precisava pendurar um lençol no pescoço. Eu já estava embrulhada em um lençol que tinha trazido de casa, mas me entregaram outro: era preciso mudar de "veste". Comecei a entregar as provas, mas eu tinha dificuldade de achar as pessoas... vi que tinha vários nomes de pessoas que não estavam na sala e faltavam as provas de pessoas que estavam na sala.

Psicóloga: E esse amigo, o que significa neste momento de sua vida?

Eu: Não sei. Ele me mandou um email, tinha dois arquivos em anexo, depois ele me ligou e insistiu para eu ler. Mas ainda não sei o que é, está tudo muito complicado, minha cabeça está só nos relatórios que preciso finalizar para o Fórum para fechar esta etapa de vida.

Psicóloga: Então talvez seja por isso que você não se lembra da frase que ele escreveu... Quem sabe depois que você ler...

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Su existencia está únicamente en los textos de la profecía. Sin embargo, sólo Él existe y no puede dejar de existir puesto que jamás vino a la existencia. Por eso ha dicho el Profeta: "Quien se conoce a sí mismo conoce a su Señor". También ha dicho: "Yo conozco a mi Señor, por mi Señor". El Profeta de Allâh ha querido hacerte comprender que tú no eres tú, sino Él: Él y no tú; que Él no cabe en ti y tú no cabes en Él; que Él no sale de ti y tú no sales de Él.

Lo que quiero decir es que tú no eres, o posees tal o cual cualidad, que no existes y que no existirás jamás, ni por ti mismo, ni por Él, en Él o con Él. Tu no puedes cesar de ser, porque no eres. Tú eres Él y Él es tú, sin ninguna dependencia o casualidad. Si alcanzas a reconocer en tu existencia esta cualidad de la nada, entonces conoces a Allâh, En otro caso, no.

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E apenas ontem, 10 de maio, é que conversei novamente com o amigo:

O que quero dizer é bem simples... (e passei um tempo pensando em como continuar, porque as coisas simples são as mais difíceis de se escrever).

abdicar da individualidade para abrir-se à coletividade é ilusão, porque não existe individualidade, nem coletividade... existe unidade.

ou seja, as indagações que eu me fiz naquele momento são inúteis.

inúteis porque não têm razão de existir... por outro lado, úteis por me revelarem meus próprios bloqueios.

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Si alguno pregunta: "¿Cómo se opera la Unión, puesto que afirmas que sólo Él es? Una cosa que es única no puede unirse más que con ella misma". La respuesta es: En realidad, no hay unión ni separación, como no hay alejamiento ni aproximación. Se puede hablar de unión entre dos o más y no cuando se trata de una cosa única. La idea de unión o de llegada comporta necesariamente la existencia de dos cosas al menos, análogas o no. Si son análogas, son semejantes. Si no son análogas, forman oposición. Pero Allâh --¡que Él sea exaltado!-- está exento de toda semejanza, así como de todo rival, contraste u oposición. Lo que se llama ordinariamente "unión", proximidad o alejamiento, no son tales cosas en el sentido propio de la palabra. Hay unión sin unificación, aproximación sin proximidad y alejamiento sin idea alguna de distancia.

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Dormi a noite passada pensando em respirar (difícil respirar no outono seco...), em umidade, unidade, cachoeira... Voltei à Chapada dos Guimarães, encontrei o homem que não sabia boiar.

- O que eu lhe disse naquele dia era apenas uma ferramenta, útil apenas para agora. Mas é mentira. Na verdade, para boiar na água, você precisa ser a água. Porque a água não afunda nem se afoga em si mesma.

O homem pareceu meio confuso, mas já que comecei, o jeito era continuar...

- E na verdade, você já é a água. Você é Tudo. É o Todo. E por isso mesmo, não precisa temer.

Pensei mais um pouco.

- A ilusão de separação vem do medo de aceitar-me por completo. Só quando nos entregamos a nós mesmos por inteiro é que chegamos à noção de Unidade.

ASATO MÃ SAD GAMAYA
TAMASO MÃ JYOTIR GAMAYA
MRITYOR MÃ AMRTYUM GAMAYA
OM SHANTIH, SHANTIH, SHANTIH

terça-feira, 10 de maio de 2011

Placas pelo mundo

Vira e mexe aparece um e-mail com as placas estranhas que as pessoas encontram pelas ruas. Sempre me pergunto se são reais ou fabricadas em Photoshop e congêneres. Enfim, resolvi seguir a tendência e postar algumas placas que vi nas minhas viagens. Essas eu vi mesmo, posso atestar que são verídicas!

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Em Natal (RN): É pras ostras prestarem atenção? Ou estão me chamando de ostra?! Sei lá... mas não vi ostra nenhuma nesse lugar!


 Ainda em Natal (RN): achei uma ótima ideia!


Em Canarana (MT): jeito original de alertar para o perigo!


Em Nova Xavantina (MT): ãh?! Alguém explica?!


Em Cuiabá (MT): aparentemente, eles consertam qualquer coisa que não seja um livro.


Em San Matias (Bolívia): "El que se queda afuera se queda" - isso é que é intransigência!


No aeroporto de Goiânia (GO): "Dance rebolation na faixa azul"?


Em Barra do Garças (MT): como é que se pode conversar com duendes e ver disco voador se é proibido bebidas alcoólicas e drogas?


Em Berlim (Alemanha): "Atenção: foguetes decolando!"


Em Cuzco (Peru): muito interessante! Pena que os brasileiros ainda não descobriram que a capital brasileira da natureza fica no Acre, aquele estado que nem existe!


Em Paranapiacaba (SP): O "munitor" faltou às aulas de ortografia.


sexta-feira, 6 de maio de 2011

Cachoeiras de São Thomé das Letras

Engraçado como as grandes mudanças de minha vida têm sido sempre precedidas por viagens. E são viagens que não foram planejadas para estar na intersecção entre fases de vida, mas que, no fim das contas, acabam se revelando como momentos de transição. Eu e Daniel havíamos planejado viajar para São Thomé das Letras na Páscoa, antes mesmo que eu soubesse que a Páscoa encerraria minhas atividades na Prefeitura Municipal de Valinhos.

Eu já tinha ido uma vez a São Thomé, anos atrás, em uma excursão de um final de semana. A programação de atividades da excursão incluía muitas palestras, reuniões, passeios para comprar artesanato, igrejas, pizzas e... nenhuma cachoeira. Os companheiros acreditavam que a iluminação espiritual se dá mais pelas palestras e discussões, e que conhecer as belezas naturais do local poderia ficar em segundo plano. Bem, respeito todas as formas de espiritualidade, mas... por isso mesmo, tenho descoberto minhas próprias maneiras de me encontrar por aí. Hoje, se depender de mim, as cachoeiras, trilhas e montanhas serão o primeiro tópico das minhas viagens.

Os motivos para gostar tanto das cachoeiras são diversos, alguns de natureza tão subjetiva que não tenho como declarar. A cada contato, vai aumentando o nível de consciência sobre a riqueza da experiência que as cachoeiras me proporcionam. Cada uma tem sua personalidade, suas delícias e seus caprichos. Existem as serenas, as revoltadas, as violentas, as gordas e as magras, as que têm cara de jovem, de mãe ou de avó, as amigáveis e as hostis, as mais masculinas e as mais femininas (embora eu acredite que a natureza de uma cachoeira é fundamentalmente feminina), as mais geladas e as mais frescas.

Confesso que o gelado da água, muitas vezes, é assustador, e que já fiquei olhando de longe, da margem, com aquela vontade enorme de entrar, mas sem coragem. Hoje eu sei que o gelado é apenas a ausência de calor, é só mais uma qualidade da matéria natureza. Esfria o corpo, sim, às vezes deixa meus lábios roxos e me faz tremer por vários minutos, mesmo depois de sair da água. Ainda assim, tenho enfrentado. Entro ordenando ao corpo que mande o calor para as extremidades (sim, após algum treinamento, o corpo começa a obedecer aos nossos comandos). Vou entrando, devagarinho ou de uma vez só, mas entro! Porque nada se compara à experiência de abraçar um rio. Os braços espumantes da Mãe Natureza vão levando embora as impurezas, mas não só as do corpo... é um abraço que lava a alma! Literalmente!

Então, para os demais aventureiros que gostam de enfiar o pé na lama, o carro em estradas terríveis, se arranhar em espinhos e tomar picadas de insetos, tudo em busca de uma boa queda d'água... seguem as dicas de lugares legais para passear em São Thomé das Letras.


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Avisos:

1. O nível de dificuldade da estrada pode variar em função das condições climáticas, mas saiba que seu carro, inevitavelmente, ganhará uma camada espessa de terra sobre a pintura.
2. O nível de desafio para encontrar o caminho pode variar em função da ação dos duendes.
3. O teor de THC no ar parece ser determinado por data, horário e distância do centro da cidade. Os valores aqui descritos se referem ao momento em que estivemos presentes.


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Cachoeira da Eubiose


Nível de dificuldade da estrada: Baixo
Desafio para encontrar o caminho: Baixo
Temperatura da água: Gelada
Teor de THC no ar: Médio


Foi a primeira cachoeira que visitamos, porque fica bem perto da cidade (cerca de 3 Km). Há placas indicando o caminho, mas em uma encruzilhada, especificamente, a sinalização está meio escondida.

Uma delícia para refrescar após 9 horas de viagem (sim, 9 em vez de 5, graças ao congestionamento no começo da Fernão Dias). A profundidade da piscina natural não é muito grande, mas com meu 1,49m de baixura, não deu pé para mim em alguns pontos. Mesmo assim, o local onde fica a queda d'água é raso o suficiente para você poder parar em pé e relaxar enquanto sente a pressão da água nos ombros, costas e cabeça.

Para chegar da estrada (onde é possível parar o carro) até a cachoeira, é preciso percorrer uma trilha de uns 10 minutos a pé. Enquanto descíamos, vimos três pessoas subirem bufando e dizendo que era muito cansativo. Até chegamos a pensar que seria um longo e árduo caminho até a cachoeira, mas na volta, concluímos que eram seres sedentários demais. Dá para subir tranquilamente, até para mim, que não pratico exercícios físicos regularmente.


Cachoeira das Borboletas


Nível de dificuldade da estrada: Alto, se você não for de Jeep
Desafio para encontrar o caminho: Alto, se você não for com um guia
Temperatura da água: Fria
Teor de THC no ar: Alto



Essa cachoeira estava incluída no roteiro de um pacote que fizemos, que passou por algumas grutas e pontos místicos da cidade. O passeio era de Jeep, o que foi providencial, porque de carro comum dificilmente conseguiríamos andar por aquelas estradas em aclive que passam no meio das pedreiras. Chegamos no final da tarde e o local estava essa muvuca que vocês veem na foto.

A cachoeira é bonita, sim. Tem um poço profundo, de tal forma que uns malucos chegam a pular de lá do alto para dentro da água (digo malucos porque, a meu ver, a profundidade não era suficiente para dar esses saltos... mas enfim, cada um é cada um). Na região das quedas, é possível parar em pé numa boa. A água cai com tanta pressão, que parece que você está levando vários socos nas costas. Mas é bom apanhar assim rs...

Dizem que o nome vem da abundância de borboletas que existem no local, mas não cheguei a vê-las, talvez porque no dia e horário em que fomos, tinha muita gente. Na entrada da propriedade onde fica a cachoeira, há um bar onde o povo se encontra para chapar e encher a pança. Em seguida, uma trilha leve em que o único risco parece ser o de pisar em bosta de vaca. Lá embaixo, o pessoal já estava bem chapado de cerveja e maconha, o que, a meu ver, não é um problema em si. Mas é meio chato encontrar latinhas de cerveja e pontas de baseado na água e meio difícil relaxar com um monte de gente fazendo algazarra. Ou seja, não é o meu perfil de cachoeira, ao menos não para se visitar em feriados prolongados...


Antares


Nível de dificuldade da estrada: Alto
Desafio para encontrar o caminho: Alto
Temperatura da água: Muito gelada
Teor de THC no ar: Baixo



Essa foi a maior cachoeira que encontramos em São Thomé. Uma queda razoável e, por isso mesmo, foi eleita pelas empresas de turismo para a prática de cachoeirismo (descer a cachoeira amarrado em cordas, ou seja, um rapel molhado).

Fazer rapel era um desejo que tínhamos já de outras viagens e dessa vez, pudemos concretizar. Acertamos com uma empresa que fica no centro da cidade. O transporte até o local ficou por nossa conta e foi bem complicado encontrar a cachoeira, que fica a uns 18 Km de distância da cidade. As placas ajudam um pouco, mas há várias bifurcações não sinalizadas. A estrada está muito ruim e em diversos trechos foi difícil de passar com o carro.

Paramos em um camping / bar no meio do caminho, pedimos informações para um jovem barbudo que nos sugeriu ir a pé por uma trilha que passava por dentro de sua propriedade. O cara disse ser dono do local, e que montar o camping e o bar foi uma escolha, para que pudesse levar a vida que queria. Como estávamos preocupados em chegar a tempo de fazer cachoeirismo, resolvemos ir de carro mesmo, e então descobrimos que já estávamos bem próximos. Largamos o carro numa espécie de estacionamento, ao lado de uma casinha de madeira que pretendia ser um bar e de um curral de vaquinhas. O resto do caminho era uma trilha pelo meio da mata, que descemos a pé, nos guiando, principalmente, pela audição, olfato e intuição.

O rapel pareceu uma atividade segura e não muito difícil. O tempo inteiro, a vítima (rs) desce amarrada e com o auxílio de um guia, que também tem controle sobre os nossos equipamentos. Olhar para baixo dá um friozinho gostoso na barriga, que nos faz esquecer o gelado da água da cachoeira. Não deu tempo de pensar em tremer enquanto eu cuidava de soltar a quantidade certa de corda e caminhar de um lado para o outro para aproveitar a queda d'água.

No fim, chegamos cedo e a cachoeira é, definitivamente, uma das mais distantes, por isso, não havia muita gente no local. Os grupos de turistas foram chegando aos poucos. Descoberta importante: chegue cedo e a cachoeira será só sua!



Filhote de Antares

Nível de dificuldade da estrada: Alto
Desafio para encontrar o caminho: Alto
Temperatura da água: Gelada de doer os ossos
Teor de THC no ar: Nulo



Essa pequena cachoeira fica logo acima de Antares e, provavelmente, não tem nome (Filhote de Antares foi criatividade minha). Foi a partir desse patamar que começamos a descida de rapel.

Como chegamos muito cedo (umas 9 e pouco da manhã), não havia ninguém, com exceção de um homem completamente nu, que pareceu surpreso e meio tímido com nossa presença. Ele logo se vestiu e desceu para Antares, então pudemos ter a experiência inédita de uma cachoeira só nossa!

A água era muito, mas muito gelada. Não sei se foi apenas impressão, mas pareceu mais fria que a de Antares, apesar da proximidade. Ainda assim, a pequena queda é deliciosa. É possível subir pelas pedras e encontrar a melhor posição para uma espécie de hidromassagem natural. Como se eu estivesse sentada num colo de pedras enquanto recebia o abraço das águas.


Cachoeira do Flávio


Nível de dificuldade da estrada: Baixo
Desafio para encontrar o caminho: Baixo
Temperatura da água: Fria
Teor de THC no ar: Alto



Saindo de Antares, decidimos parar em mais alguma cachoeira pelo caminho. Passamos pela Véu de Noiva e Paraíso, mas desistimos de descer, quando vimos o número de carros estacionados na beira da estrada. Seguimos na direção da cidade e paramos na placa "Cachoeira do Flávio".

Conforme fomos descendo a trilha, tive a impressão de estar em um Woodstock mineiro. Um carro colocou um rock em um volume que certamente espantou até os duendes e OVNIs do local e o pessoal ficava na trilha, alguns dentro de barracas, segurando latinhas de cerveja, salgadinhos e baseados. Logo abaixo, um outro carro tentava competir, tocando axé.

A cachoeira não nos atraiu muito. Daniel falou que era "muito rasa", eu falei que era "muito lotada". Subimos e voltamos para a cidade. Mas a foto registrou nossa passagem por lá.


Véu de Noiva


Nível de dificuldade da estrada: Médio
Desafio para encontrar o caminho: Baixo
Temperatura da água: Gelada
Teor de THC no ar: Baixo



No outro dia, voltamos à Véu de Noiva, mas logo cedo, usando a lição aprendida em Antares. Para descer, há uma trilha um pouco íngreme. Lá embaixo, havia pouca gente, do jeito que eu gosto (sim, em cachoeiras e praias, sou antissocial).

Meio difícil chegar até a queda d'água, porque a correnteza é forte. A dica é ir pela margem à esquerda, segurando nas pedras, na medida do possível, até encontrar um patamar onde é possível ficar de pé. A partir dali, pode-se caminhar até a pedra onde a água cai, com cuidado para não escorregar. Vale a pena!

O legal dessa cachoeira é que fica num local aberto, onde bate sol. É um outro clima, uma mistura de quente e frio. O fogo incidindo na água, o masculino no feminino. No mínimo, pode-se aproveitar para secar a pele e pegar um bronzeado.


Paraíso


Nível de dificuldade da estrada: Médio
Desafio para encontrar o caminho: Baixo
Temperatura da água: Gelada
Teor de THC no ar: Baixo



Essa cachoeira fica bem próxima à véu de noiva. Nem é preciso trocar o carro de lugar. A trilha bifurca logo no começo e a da esquerda segue para a Paraíso, enquanto a da direita segue para a Véu de Noiva.

Essa cachoeira parece ser muito apreciada por famílias com crianças, por causa dessa prainha de água doce. É rasa até mais ou menos a metade da piscina natural, mas a partir daí, não dá mais pé. No local da queda d'água, também é bem profunda. E eu, tonta, quase me afoguei porque me meti debaixo da água num local muito fundo. Com a pressão da água, submergi e não conseguia mais voltar... Sim, quando a cachoeira é hostil, é preciso ter cuidado. A Mãe Natureza também impõe limites.


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Sete cachoeiras visitadas, no total. Não, o número não foi premeditado.

Em algum post futuro, darei mais algumas dicas para quem visita São Thomé das Letras.

segunda-feira, 2 de maio de 2011

Culpa da mulher

Minha primeira impressão de estar num samba do Adoniran surgiu no primeiro mês de trabalho, quando comecei a participar dos atendimentos em grupo a pessoas em situação de rua. Os grupos eram realizados por um assistente social, uma estagiária em assistência social e, a partir de novembro, também por mim, na qualidade de psicóloga.

Era sinceramente divertido ouvir as histórias sobre a realidade das ruas, porque é um lugar pelo qual eu passo quase todos os dias e, mesmo assim, nunca tinha percebido a potencialidade que existe ali. Nas ruas é possível morar, o que inclui comer, dormir, fazer as necessidades fisiológicas, aprender, conversar, usar drogas, transar, fazer amigos, brigar, trabalhar, ter filhos, festejar e tudo o que se pode fazer entre quatro paredes.

Só o que aquelas pessoas não conseguiam era tomar banho e isso criava um efeito indesejável durante os atendimentos em grupo. Imagine colocar numa sala de, no máximo, uns 15 metros quadrados cerca de 6 ou 7 pessoas (às vezes, chegavam a 12!) que moram nas ruas e não tomam banho há semanas. Um cheiro de suor, urina, cachaça, cigarro e doença exalava das bocas e dos poros. Ligávamos o ventilador, que não ajudava muito, e procurávamos transferir a atenção do nariz para o ouvido.

Naquele tempo, essas pessoas nem chegavam a aguardar na recepção, porque uma funcionária considerava que sentir esse cheiro não fazia parte de suas atribuições. Havia também uma ideia aqui e acolá de que não podemos misturar essa gente com outras gentes "de família". E de que eles mesmos poderiam se sentir constrangidos de aguardar atendimento junto a pessoas "normais". Alguns meses depois, houve um movimento em direção à inclusão e o acesso das pessoas em situação de rua passou a ser feito pela recepção. Sim, declaro aqui minha impressão, sem ironia: a assistência social em Valinhos está em constante construção e aperfeiçoamento.

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Falei tudo isso para contextualizar o a história que vou contar hoje, de um senhor que estava nas ruas há muitos anos e, durante um atendimento em grupo, resolveu contar como é que foi parar nessa situação. Olhando para mim, contou a desgraça de sua vida como quem conta um "causo" qualquer.

- Foi assim, moça... eu morava numa casa, com minha mulher e meus filhos. Todo dia eu ia no bar, tomava uns goró, voltava pra casa e batia na minha mulher. Ela dizia: fica esperto, que um dia te ponho na rua! E no dia seguinte eu ia no bar, tomava uns gole, voltava e batia nela de novo. No dia seguinte ia no bar de novo, tomava umas pinga, voltava e batia nela. Foi assim todo dia, moça. Todo dia eu tomava umas e batia na minha mulher. Ela sempre dizia que ia me botar na rua, mas eu nunca acreditava.

Ele então fez uma pausa, olhou para o outro lado, suspirou. Voltou a olhar para mim e completou:

- Mas cê sabe, né...? Que em mulher a gente tem que acreditar!

Sorri. Estimulei-o a continuar a história:

- E o que aconteceu?

- Um dia cheguei em casa e minhas malas tavam todas na rua. Parece que o Juiz falou que eu não podia mais voltar.

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Resultado: da noite para o dia, esse senhor passou de "pai de família" para "morador de rua", "mendigo", "indigente". E aí a gente vê como os rótulos são provisórios e imprecisos...