quarta-feira, 28 de setembro de 2011

Sobre o Filho Pródigo e o perdão

O corpo estava todo dolorido do esforço do dia anterior, mais os asanas da aula de yoga. Deitada no chão, eu procurava soltá-lo totalmente, com a certeza de que eu não afundaria piso abaixo, apesar do meu próprio peso parecer infinitamente maior. Era a preparação para o relaxamento.

Foi quando entrou na sala de visitas da minha mente uma pessoa que preciso muito perdoar. Estava sentado em posição de lótus, pele morena, brilho nos olhos, que se mantinham firmes no horizonte, sem piscar. Uma pedra na testa, como aquelas figuras tipicamente indianas. De repente, algo o arrastava para longe e a imagem ia ficando pequena. Senti um aperto no peito, vontade de trazer a imagem para mais perto. Saudade. E então senti que o perdão não acontece quando a gente está apegado à dor.

A falta de perdão é o apego à dor. Simples assim.

Então lembrei daquele homem que conversava com a Mãe Divina, quando ele disse para as pessoas se livrarem do que não precisavam. Desapegar...

E vi que se eu deixasse ir embora a dor que aquela pessoa me trazia, ela jamais seria a mesma pessoa para mim. Por isso tanto vigor ao tentar reter a imagem antiga e dolorida, machucada pelo tempo.

Deixei a imagem do homem em posição de lótus ir embora, devagarzinho. Chamei de dentro de mim muitas outras imagens de outras pessoas que preciso perdoar. Foram todas passando por mim, naquele mesmo asana, e fui fazendo o exercício de me desprender de todas elas. Podem ir embora! Desapego... desapegar para perdoar.

***

- É como o intestino preso, sabe? A gente se apega à merda e não deixa ela sair. Mesmo sabendo que não serve pra nada!

- Hahahahaha!

- Sério! Até sonhei com isso ontem. Eu estava limpando um monte de merda em cima de um sofá, achando que era do cachorro. Mas então, vi que em volta de cada montinho tinha um halo de sangue. Pensei: nossa, acho que meu intestino estava tão preso que me machuquei pra cagar. Só então eu percebi que a merda toda era minha...

***

A PARÁBOLA DO FILHO PRÓDIGO

Lucas, capítulo 15, versículos 11-32.


11- Certo homem tinha dois filhos;

12- o mais moço deles disse ao pai: Pai, dá-me  a parte dos bens que me cabe. E ele repartiu os haveres.

13- Passados não muitos dias, o filho mais moço, ajuntando tudo o que era seu, partiu para uma terra distante e lá dissipou todos os seus bens, vivendo dissolutamente.    

14-Depois de ter consumido tudo, sobreveio àquele país uma grande fome, e ele começou a passar necessidade .

15- Então, ele foi e se agregou a um dos cidadãos daquela terra, e este o mandou para os seus campos a guardar porcos.

16-Ali, desejava ele fartar-se das alfarrobas que os porcos comiam; mas ninguém lhe dava nada .

17- Então, caindo em si, disse: Quantos trabalhadores de meu pai têm  pão com fartura, e eu aqui morro de fome!

18- Levantar-me-ei, e irei ter com o meu pai, e lhe direi: Pai, pequei contra o céu e diante de ti;

19- já não sou digno de ser chamado teu filho; trata-me como um dos teus trabalhadores;

20- E, levantando-se, foi para seu pai. Vinha ele ainda longe, quando seu pai o avistou, e, compadecido dele, correndo, o abraçou, e beijou.

21- E o filho lhe disse: Pai, pequei contra o céu e diante de ti; já não sou digno de ser chamado teu filho.

22- O pai, porém, disse aos seus servos:

Trazei depressa a melhor roupa, vesti-o, ponde-lhe um anel no dedo e sandálias nos pés;

23- trazei também e matai o novilho cevado. Comamos e regozijemos-nos;

24- porque este meu filho estava morto e reviveu, estava perdido e foi achado. E começaram a regozijar-se

25-Ora, o filho mais velho estivera no campo; e, quando voltava, ao aproximar-se da casa, ouviu a música e as danças.

26- Chamou um dos criados e perguntou-lhe que era aquilo.

27- E ele informou: veio teu irmão, e teu pai mandou matar o novilho cevado, porque o recuperou com saúde.

28- Ele se indignou e não queria entrar, saindo, porém, o pai procurava conciliá-lo.

29-Mas ele respondeu a seu pai. Há tantos anos que te sirvo sem jamais transgredir uma ordem tua, e nunca me deste um cabrito sequer para alegrar-me com os meus amigos;

30- vindo, porém, esse teu filho, que desperdiçou os teus bens com meretrizes, tu mandaste matar para ele o novilho cevado.

31- Então, lhe respondeu o pai: Meu filho, tu sempre estás comigo; tudo o que é meu é teu.

32- Entretanto, era preciso que nos regozijássemos e nos alegrássemos, porque esse  teu irmão estava morto e reviveu, estava perdido e foi achado.

***

Não sei muito bem o que dizem os padres e pastores, porque nunca fui lá muito de igreja. Mas essa parábola me lembra uma cena da minha infância.

Certa vez, meu pai disse ao meu irmão que daria a ele 10 reais para cada nota acima de 8 que ele tirasse. (Meu irmão, naquele tempo, ainda não era nerd e dava um certo trabalho com as notas da escola...). Fiquei toda contente imaginando o que eu faria com uns 70 ou 80 reais referentes ao meu boletim do próximo mês (eu era nerdíssima!). Mas meu pai me disse que a proposta não se estendia a mim, porque ele não tava afim de ir à falência.

Sim, eu me identifico com o irmão mais velho da parábola. Meu mental se debate matutando como o filho pródigo pode ser recompensado por uma simples promessa de interromper o mau comportamento, enquanto pra quem sempre andou na linha, fica tudo na mesma.

Os padres e pastores dizem que o filho pródigo foi perdoado porque se arrependeu. Contesto, com base nas palavras do próprio personagem: "Quantos trabalhadores de meu pai têm pão com fartura, e eu aqui morro de fome! Levantar-me-ei, e irei ter com o meu pai, e lhe direi: Pai, pequei contra o céu e diante de ti". Ou seja: foi premeditado. O filhinho, quando viu que estava passando fome, resolveu se fingir de arrependido e pedir para ser trabalhador do seu pai, para garantir minimamente o ticket refeição. Vai ver que estava até testando os limites do pai. Como foi reforçado, e não punido, continuou testando e se encrencando cada vez mais. Dizem que hoje é viciado em crack.

Interpretação chocante? Pode ser, mas ninguém pode dizer que esteja errada. Não se preocupe, isso diz muito mais sobre mim do que sobre a Bíblia. É como olhar para as nuvens e dizer que formas elas têm: um teste projetivo.

***

EU: O problema é que não entendo o perdão. E não posso mesmo entender, porque não é compreensível. Eu sei que é algo que tenho que praticar, e não compreender.

PSICÓLOGA: Não sei nem se é da ordem do praticar... é sentir... acessar... Acho que é isso, acessar. De repente você encontra um lugar em você e ele está lá!

EU: Deve ser... e não sei o que fiz para bloqueá-lo desse jeito.

***

Digitei no meu navegador mental: www.perdao.god.br
(Sim, .br porque Deus é brasileiro!)

Vi aparecer uma mensagem:

ACESSO NEGADO! Você não tem permissão para acessar essa página.

E concluí comigo mesma: tá bom, com essa censura, devo estar na China!

***

PSICÓLOGA: Sabe... perdoar não é divino, é humano.

EU: Como assim?

PSICÓLOGA: Sabe por que Jesus disse "Perdoa, eles não sabem o que fazem"?

EU: Por causa do Barrabás?

PSICÓLOGA: Sim, mas não é só isso. É que enquanto esteve na Terra, Jesus teve a oportunidade de viver como os homens vivem e percebeu o quanto era difícil. Aqui na Terra sentimos frio, fome, dor... Ele não sentia nada disso lá no Céu. Então, percebendo o sofrimento da humanidade, entendeu o que nos faz ficar assim. Percebeu que não sabemos o que fazemos. Mas só pôde perceber depois que passou pela experiência de ser humano.

EU: Bom... faz sentido. Eu sempre resisti a encarar o fato de que sou humana, né?

***

Mas me disseram, uma vez, que a parábola do Filho Pródigo representa a vivência de experiências de cada um de nós.

A ideia pode ser entendida de forma simples: Deus nos fez à Sua imagem e semelhança, para que possamos adquirir experiência, que Ele não tem. Conforme vivemos, Ele se enxerga através de nós, pois somos simplesmente Seu reflexo: algo assim, como espelhos. Isso quer dizer que toda experiência é válida, porque contribui para o processo de autoconhecimento divino.

Nesse sentido, o Filho Pródigo tem mais valor que o filho mais velho. O Filho Pródigo saiu de casa, correu mundo, conheceu prostitutas, conheceu a fome, conheceu o prazer e a dor. Voltou para casa com toda a experiência de um Iniciado, enquanto o outro não largou a segurança do lar e não trouxe nenhuma experiência nova para contribuir com a Evolução.

E então, entendo para que serve o perdão: é para que possamos aprontar. Sim, porque sem aprontar, como é que vamos adquirir experiência?

***

Ok, entendo, mas não adianta entender, é preciso acessar. E enquanto o acesso estiver negado, sob a censura do governo chinês, não vai adiantar nada essa masturbação mental que me domina e me fascina.

EU: Acho que é como quando eu sonhava com monstros e magos negros: o perdão está bloqueado em meu porão mais profundo e é difícil olhar para a sombra, encarar meu monstro interior. Mas uma hora vou ter que fazer isso, ou então virá uma avalanche, como no ano passado!

PSICÓLOGA: Na verdade, o que você vai encarar é a sua própria fragilidade. Vai olhar para dentro de si e ver uma menina muito, mas muito frágil. E isso assusta mais do que qualquer monstro...

EU: É... acho que sim...

***

Então, diante de tamanha (e desconhecida) fragilidade... diante da inflexibilidade da censura ao acesso... diante da minha incapacidade de perdoar... o jeito é pedir: "Perdoa-me, eu não sei o que faço!".

***

E de repente sonhei que minha casa pegava fogo. Tudo em chamas e, conforme eu andava pelos cômodos, mais objetos entravam espontaneamente em combustão. Fui separando livros e porta-retratos, documentos e todos os objetos que eu acreditava que precisaria levar para fugir da cidade. Sim, porque a cidade toda pegava fogo e passava por constantes explosões. Lembro até de pegar uns miojos no armário, caso eu não encontrasse nenhum lugar para comer.

Algumas coisas eu queria levar, mas desisti. Deixa que queimem... Não me fazem mais sentido, preciso apenas do básico. Do resto, o jeito é me desapegar... Pra que servem tantas fotos? Pra que tantas lembranças?

***

Sim, pra que servem tantas lembranças? Por que me apego tanto a detalhes do rodapé da memória?

Deixa a dor passar... deixa ir... let it be...

quarta-feira, 21 de setembro de 2011

O chamado

Enquanto eu assistia ao show do Teatro Mágico, em homenagem à comemoração dos 5 anos de vida de uma certa Universidade, eu não imaginava que vinte e quatro horas depois eu estaria no alto de um morro, sentindo um vento gelado arrepiar os pêlos dos meus ossos e segurando nas mãos uma vela, enquanto assistia a um senhor grisalho conversar com Ela... que eu não podia ver.

O telefone tocou, mais de dez da noite. Era um chamado. Eu tinha compromissos no dia seguinte, mas desmarquei tudo. Quando a Mãe chama, a gente precisa atender.

***

Existem três caminhos para alcançar a Iluminação, dizia um orientador espiritual.

Janana é o caminho da Inteligência. Bhakti, o da Devoção. Karma, o da Vontade. Os três conduzem à Iluminação.

Por Jnana, a gente conhece as coisas e busca chegar a Deus (entenda-se Deus como o seu Eu Interno) pelo estudo, pelo conhecimento. Por Bhakti, a gente chega a Deus pelo amor, pela fé incondicional, por doar-se ao próximo. E por Karma, chegamos a Deus pelo trabalho, disciplina e perseverança.

Jnana e Karma, OK, eu pensava. Estudar e conhecer é muito fácil, é a melhor coisa do mundo. Trabalhar é sossegado também. Mas esse negócio de devoção eu não entendo. Não dá pra compreender como alguém pode ter fé incondicional e acreditar em algo que não compreende. Também não dá pra entender como alguém pode simplesmente amar a Tudo e a Todos e fazer o Bem pelo Bem, se em todo bem está implícito o mal, e vice-versa.

Na média da humanidade, geralmente Bhakti é o caminho mais procurado. As pessoas vão à igreja e aprendem a amar ao próximo como a si mesmo, perdoar, oferecer a outra face, doar-se ao próximo. Tudo tão simples, que nunca compreendi. Claro que não, porque não há o que compreender. É preciso apenas praticar. Mas praticar como, se não entendo?!

Sim, Bhakti é o grande mistério!

***

Quando abri a porta do carro e respirei, o ar era tão leve, que me preencheu com serenidade (tão logo acabou a crise de espirros!). Eu estava em uma fazenda em Minas Gerais, com muitos cachorros, umas plantas florindo antecipadamente a primavera, uns passarinhos coloridos. Pouco tempo depois, re-conheci quem eu nunca vi, mas já ouço e leio há quase um ano e meio.

- Que bom que atenderam ao chamado.

Após um jantar vegano (ou seja, sem nenhum produto de origem animal), aconselharam-me a vestir muitos agasalhos.

- Quando Ela aparece, fica ainda mais frio! Não sei por quê!

Subindo a trilha, eu enxergava muito mais gente do que havia ali, de fato. Sim, outros seres também subiam, naquela escuridão que se acentuava pelos meus olhos saturados de luz da vela, cuidando para que ela não se apagasse. Em meio às brumas, um sussurro:

- Veja! É ali, naquela arvorezinha, que Ela costuma se manifestar.

***

- Você já reparou que sua impaciência é gritante? - Disse a terapeuta, na quarta-feira.

- Apesar da sua impaciência gritante... - Disse meu amigo, no sábado.

***

Não levei relógio e minha noção de tempo se apaga em Minas Gerais... então eu não sabia há quanto tempo estava ali, ouvindo aquela oração coletiva e sem conseguir pronunciar uma só palavra.

- Agora silêncio, porque Ela já está chegando.

Uma rajada de vento frio bateu nas minhas costas e tive a impressão de que me transpassou. Pela única vez naquela noite, a chama da vela que eu segurava se apagou.

***

- Vamos orar. Vamos pedir misericórdia. Ela disse que devemos orar, para prevenir o pior. O ano que vem será decisivo.

- MISERICÓRDIA! MISERICÓRDIA! Misericórdia para toda la humanidad!

E a voz intrometida dentro da minha cabeça perguntou: "O que é misericórdia?". Respondi: "Hummm... você tem um dicionário?".

***

- Cordeiro de Deus, retirai os pecados do mundo, tende piedade de nós.

Ouvi isso nas poucas vezes em que estive em uma missa. Desde criança, sempre fui maldosa. E me perguntava: "Tá! E por que Ele faria isso?!".

O pensamento é inusitado, mas tem base em um raciocínio simples: o que a humanidade ganha se for sempre perdoada? Como é que poderia aprender com os próprios erros? Como mandar para o céu um pecador, sem que ele tenha pago a dívida? Não faz sentido... não faz...

E agora toda essa gente, aí, pedindo misericórdia à Mãe Divina. Eu tentei, sim, tentei acompanhar a oração, mas cada palavra que eu dizia me soava falsa. E a voz na minha cabeça, aquela mesma voz que me perguntou o que é misericórdia, acrescentou: "Cala a boca. Desde quando a gente quer misericórdia pra humanidade? A humanidade não faz por merecer o perdão. E sabemos que estamos incluídos nisso: já aprontamos demais, não é? Desde que o mundo é mundo, estamos aqui, contribuindo para tudo se acabar. Pois é. Melhor mesmo é todo mundo se f***. Só depois poderá vir a redenção..."

***

E em meio a tanta gente orando para atender ao pedido d'Ela, eu me mantinha irracionalmente calada. Os olhos pesados, quase se fechando. Eu me retorcendo por dentro e pensando: "cadê o café? Sério mesmo que estou tão viciada em cafeína?".

(Uma pessoa que tem impaciência gritante não pode tomar café. Muito menos viciar nele. O efeito é semelhante ao da cocaína.)

As pálpebras pesadas, eu ainda ouvia o que aquela gente dizia, coisas sobre misericórdia, redenção, doar-se, orar, não comer carne... Mas tudo parecia uma realidade paralela, que no infinito se encontrava com a realidade interna. Meus olhos se fixaram no ponto de intersecção entre o que está dentro e o que está fora. E então, uma outra voz falou. Era bem mais serena e calma que a primeira, quase um acalanto.

- Eu não acredito em misericórdia e perdão, porque não perdoo ninguém. E acho que se não consigo perdoar, o perdão não existe.

Algo se aqueceu dentro de mim.

- Mas isso é mesmo um absurdo, não? - Continuou a mesma voz. - É claro que o perdão existe. Se tanta gente perdoa, por que Deus(a) não há de perdoar? O perdão está em todo lugar, inclusive dentro de mim. Por que foi que eu o bloqueei?

***

Eu tinha dormido muito bem à noite, mas no carro, de volta ao mundo da impaciência gritante de Santo André, o sono me pegava outra vez. Tentei manter os olhos abertos, mas de repente, eu olhava em volta e já tinha rodado cem quilômetros com a cabeça pendendo sobre os ombros.

Pois é. Cada vez que meus olhos se abriam, eu ouvia tudo de novo: Mas o que é misericórdia? Cadê o dicionário? Como é que se perdoa? É justo perdoar? Existe perdão para quem não perdoa?!

Bhakti é o grande mistério!