terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

Lições sobre a Dor - Parte 2


O pé esquerdo estava cada dia mais machucado, em carne viva. E o resto do corpo começou a acompanhá-lo nesse caminho. Aos poucos, foi descamando o couro cabeludo, o umbigo, as dobras atrás dos joelhos e na frente dos cotovelos, a região genital, as mãos. Eu convivia com a dermatite há dezesseis anos, e nunca tinha tido tantas feridas pelo corpo ao mesmo tempo. E eu continuava na fazenda, fazendo trilhas pela Serra do Roncador e contando apenas com a babosa para aliviar tanta ferida. Sem dormir direito, porque com o perdão do trocadilho, à noite, ronca-a-dor...

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Durante a viagem, três amigos cujo nome começava com a letra M, por acaso (?), me ajudaram a compreender minhas vivências. Neste relato, para simplificar, irei juntá-los no mesmo personagem: M.

Estávamos almoçando e jogando conversa fora quando M. falou que o ser humano precisa transmutar a dor. Na noite seguinte, enquanto eu sincronizava a respiração com o corpo latejante, ouvia a minha voz dentro de mim, dizendo: "transmuta a dor... transmuta a dor..." E perguntei: "certo, mas vou transmutar em quê?". Não tive resposta.

Dias depois, M. falou sobre Tarô, enquanto comíamos espetinhos, tomávamos cerveja e cantávamos no caraoquê. Comentou brevemente que o Arcano 12 está relacionado ao 21, um é apenas o inverso do outro. Sinceramente, eu não me lembrava qual era o Arcano 21 e nem cheguei a perguntar na hora.

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O Arcano 12, esse sempre me lembro bem, é o Sacrifício. Geralmente é representado por um homem preso pelo pé a uma forca. No Tarô Mitológico, o personagem é Prometeu, aquele que roubou o fogo e o entregou à humanidade. Prometeu tinha o dom de prever o futuro e sabia das consequências que seu ato teria: seria castigado pelo poderoso deus Zeus, permanecendo acorrentado a uma rocha. Todos os dias, uma águia viria comer seu fígado, órgão que se regenera, perpetuando a tortura diária. E mesmo sabendo do martírio a que se sujeitaria, Prometeu concretizou seu plano, sacrificando-se pela humanidade, para que esta evoluísse.

O Enforcado, portanto, representa todos os seres que se deram em holocausto pela humanidade. Inclusive o mais conhecido em nosso meio ocidental: Jesus Cristo. Algo interessante sobre o homem enforcado pelo pé é que ele pode, a qualquer momento, libertar-se, mas não o faz. Sacrifica-se por vontade própria, acreditando em um bem maior. Paradoxalmente, seu martírio é provocado por si mesmo, mas infligido pela divindade.

O Enforcado, Arcano 12 do Tarô Mitológico

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Na noite seguinte, como em todas as outras, o corpo todo latejando e eu não conseguia dormir. E como em todas as outras noites, consegui relaxar sincronizando a respiração com o ritmo pulsante da dor. Foi quando ouvi minha própria voz repetir a frase de alguns dias atrás: “transmuta a dor... transmuta a dor...”. De repente, inesperadamente, a frase prosseguiu: "Transmuta a Dor em Liberdade...".  Essa nova ordem me trouxe um conforto gostoso, como se fosse colo de mãe. Adormeci com a sensação de que havia ingressado em uma nova fase...

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Só no dia seguinte é que percebi que a frase fez muito sentido. "Assim como nós liberamos o pecado dos demais", dizia o Pai Nosso em Aramaico, que surgiu na minha cabeça algumas noites atrás. Liberar, libertar, liberdade. "Transmuta a Dor em Liberdade". É mais ou menos o que eu pensava sobre o Arcano 12, certo? Um ato de sacrifício pessoal que liberta a humanidade... Um por Todos!

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Na manhã seguinte, em um hotel de Barra do Garças, peguei o notebook e abri a pasta em que guardo diversas imagens de tarô. Um dos conjuntos é muito especial. Foi criado por um artista, a partir das imagens relatadas por um homem que regressou de uma viagem bastante significativa, na qual teve a oportunidade de ver cada lâmina de tarô apresentar-se a ele como se fosse uma cena viva e em movimento.

Foi por essas imagens que comecei minha jornada, clicando logo no misterioso número 21. Meus olhos se arregalaram e sorri com a surpresa, quando li:

A LIBERTAÇÃO.

O título encabeçava a imagem de um jovem sentado sobre um cavalo branco, jogando moedas para cima com uma mão e apanhando-as no ar com a outra. Moedas, dinheiro, matéria. Como se o jovem recolhesse as experiências da matéria, que após dar uma voltinha pelo ar, retorna ao ponto inicial, embora em um plano mais avançado do espaço.

No Tarô de Marselha e no Esotérico, é O Louco, ou seja, aquele ser que se lança ao abismo, em uma viagem com paradeiro desconhecido, iniciando um novo ciclo de aventuras... libertando-se, portanto, de um ciclo passado, já apodrecido e gasto. Já no Tarô Egípcio, o Arcano 21 se chama A Transmutação. "Transmuta a Dor em Liberdade"...

O Louco, no Tarô Esotérico

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O Sacrifício no 12, a Libertação no 21. Tudo se encaixava com as intuições e sincronicidades das conversas com o amigo M. Essa descoberta veio no último dia em que estive no Roncador, como se fosse o encerramento do processo de descobertas sobre a Dor que se iniciou quando cheguei.

Tive dois dias para pensar nisso ao longo da estrada, viajando com os pés por cima do painel, porque se ficassem para baixo, a dor era ainda maior. Surgiam manchas sobre o polímero, formadas pelas minhas secreções amareladas. O assoalho e o banco do veículo cobriram-se todos de casquinhas descamadas do meu pé e da minha cabeça. O corpo todo pulsando de dor, e as lesões já estavam quentes, febris.

Do Mato Grosso a São Paulo, passando por Goiás e Minas Gerais e procurando compreender que sacrifício é esse, e como a Dor pode ser transmutada em Liberdade. Foi assim que regressei, na esperança de que as feridas iriam regredir quando eu chegasse a Santo André. Mas eu estava enganada. O processo estava em pleno andamento e bem longe do fim...

(Continua)

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

Lições sobre a dor - Parte 1

Livrei-me de um peso danado no dia 25/01/2013, quando finalmente terminei de escrever a Tese. E agora sobra tempo para viver e para escrever coisas mais importantes, como as postagens do blog. Mas esse assunto fica para outro dia. Antes, quero continuar do ponto em que parei as aventuras no Mato Grosso, vivenciadas em novembro de 2012. E a continuidade passa por muita dor...

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Quando cheguei na fazenda, na ponta da Serra do Roncador, meu pé esquerdo estava em retalhos. A pele descamou e ressecou, abrindo fendas que sangravam. Minava da ferida um líquido amarelado, que atraía os mosquitos. Se eu fosse uma pessoa normal, talvez tivesse desistido de ir a uma fazenda onde eu dificilmente teria acesso a serviços de saúde e onde esperava fazer trilhas de horas montanha acima. Mas nunca fui normal...

Eu usava meias o tempo todo, para evitar os mosquitos. Ou melhor, usava meia, no singular: como estava muito calor, decidi cobrir apenas o pé esquerdo. E andava assim, de meia em um pé só e calçando cróquis cor-de-rosa, como se faz em um local em que você não espera, de forma alguma, que sua aparência seja levada em consideração por qualquer pessoa que você venha a encontrar ou conhecer.

Mal cheguei à fazenda, e já estava me coçando. Observava os mosquitos cobrirem de pontos escuros a meia azul do meu pé esquerdo. De repente, surgiu uma moça na qual eu ainda não tinha reparado. Não sei o que foi que me deu a impressão (mais tarde confirmada) de que era uma pessoa muito especial. Talvez fosse o jeito que ela andava e o olhar, que me passavam a confiança de alguém que já conheceu o seu melhor e o seu pior, e agora está sendo simplesmente autêntica. Simplesmente ela mesma... Disse que estava no chalé e teve uma "comunicação" de que eu estaria com algum problema de pele no pé.

Trouxe um pedaço de folha de babosa, aquela planta também conhecida como aloe vera. Ensinou-me a fazer uma espécie de curativo com a planta, fixando-a na pele por baixo da meia. Foi assim que sobrevivi nos próximos oito ou dez dias: enquanto eu usava a babosa, não sentia dor, nem coceira. Chegava a me esquecer da ferida, enquanto andava pelas trilhas montanha acima.

Interessante que, três dias antes, eu havia visitado um casal de amigos. E outra moça muito especial me trouxe uma babosa...

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Usando babosa, a dor desaparecia durante o dia, mas não deixava de me acompanhar à noite. Aliás, a escuridão e o silêncio a fortaleciam... Eu sentia o pé esquerdo latejar, como se fosse um machucado que alguém limpou com álcool. O corpo todo pulsava, numa agonia viva. Claro que não era possível dormir, e eu morria de inveja do Daniel, que já estava fazia tempo no mundo dos sonhos... Foi assim que passei minhas noites durante pelo menos duas semanas. Talvez umas três ou quatro...

O que fazer quando não se pode dormir, no meio do mato, pulsando de dor? Não há analgésicos, nem televisão, nem videogame, nem computador para distrair a cabeça. Lembrei-me da professora de yoga. Quando fazíamos aqueles asanas complicados, retorcendo todo o corpo, ela dizia: "encontre conforto na dor! Respire!". Resolvi sincronizar minha respiração com o pulso latejante da dor. A dor é só um sentimento como os outros. Como o frio, como o calor, como o tato. Não é melhor, nem pior que outros sentimentos. Então, o melhor aproveitá-la. Respirar, respirar e relaxar.

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"Uachpoclan raubén uartarréin". Essa frase entrou na minha cabeça, e eu a repetia como se fosse um mantra. Sabia que era parte do Pai Nosso em aramaico, que eu havia aprendido com o Grupo que encontramos na fazenda. Mas não conseguia lembrar o significado, muito menos de madrugada e com dor. Dormi ao som de minha própria voz, que repetia: "Uachpoclan raubén uartarréin" a cada expiração sincronizada com a dor pulsante.

No dia seguinte, é que fui investigar. Se entendi corretamente, a frase significa algo como: "assim como nós liberamos os pecados dos demais". Lembrei-me dos ensinamentos que aprendi com o Grupo: devemos parar de julgar os outros, de falar mal, porque isso os prende aos próprios pecados e acaba por nos prender nos nossos também. O que isso tem a ver com a dor? Talvez muito mais do que eu possa imaginar...

(continua)