segunda-feira, 6 de junho de 2011

Todo dia

- Eu queria merrmo é tá na Bahia uma hora dessa, cumendo um vatapá, um cuzcuz de tapioca, um acarajé do Rio Vermelho, deitado na rede de mainha! - Disse o cobrador, que pertencia à minoria privilegiada que consegue viajar sentada.

- Então por que não vai duma vez?! - Perguntou uma passageira intrometida.

- Eu vô e levo ocê junto, minha flor! - Respondeu o cobrador, num tom tão carinhoso e espontâneo que me fez rir sozinha lá no fundo do busão.

***

07:13, saio no portão e vejo o 477P-10 passando direto pelo ponto, do outro lado da avenida. Droga! Paro no ponto de ônibus, tremendo debaixo de um casaco que me cobre do pescoço aos joelhos, jogado por cima de um agasalho de lã.

477P-10, é quase um número de telefone! Só essa merda de cidade gigante pra precisar de tanto dígito pra definir uma simples linha de ônibus!

Descem vários ônibus, que eu nem imagino para onde vão. Gosto de imaginar como são esses lugares. Tipo assim, quem é que mora em Vila Brasilina? Onde é mesmo o Jd. Zoológico? Shopping Plaza Sul não tem graça, é aqui do lado. O meu preferido é o Jd. Clímax! Imagine como deve ser esse bairro!

Com o tempo, começa a ficar repetitivo: outro Clímax? Outro Brasilina? Vai juntando gente no ponto de ônibus e as pessoas começam a comentar: "já passaram 2 Ipiranga do outro lado!", "já faz mais de meia hora que tô aqui!"... Um casal de velhinhos parece sentir mais frio que eu. Sempre me pergunto o que os idosos, que já se aposentaram e podem dormir até tarde, fazem num ponto de ônibus antes das 8h da manhã, num frio de doer os ossos!

Uma moça com cara de ter mais ou menos a minha idade puxa assunto. Trabalha na Paulista, com assessoria de imprensa. Estranha nunca ter me visto no ponto de ônibus: "É que eu estou trabalhando nesse novo emprego há pouco tempo. Comecei a pegar esse busão na semana passada", explico.

Passa outro busão, mas esse vai para RESERVADO, um lugar que bem poderia ficar logo antes do Clímax.

Ela acende um cigarro.

- Também, quer ver que assim que eu acender o cigarro, o busão vai passar? Não vou dar nem dois tragos e essa merda aparece!

- Então acende logo, que eu tô atrasada! - Respondo.

Não deu certo. Passou o terceiro Ipiranga do outro lado. Olho no relógio do celular: já era para eu ter chegado em Santo André.

A moça terminou o cigarro, me contou sobre os desfiles e jantares a que precisa ir, graças ao seu difícil trabalho de assessora de imprensa. Eu contei sobre as minhas diversas mudanças de casa, umas 7 desde 2003.

08:07, enfim surge o 477P-10 Ipiranga! Na falta de um, chegam logo dois. Entro no ônibus, já muito irritada. Olho para a cara do motorista.

- Caramba! Quase uma hora! Já era pra eu estar em Santo André, trabalhando!

O homem abaixa a cabeça, talvez pra esconder a cara feia.

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Depois do busão e do metrô, chega a hora do trem da CPTM. Integração gratuita na estação Tamanduateí. Um som bonito de piano me chamou a atenção. É um projeto cultural: deixam pianos disponíveis em algumas estações, para quem quiser tocar. Alguns passageiros aproveitam para treinar, outros tocam até o bife, mas de vez em quando tem um pianista quase-profissional que resolve nos presentear com seus dons.

OK, menos mau humor agora. Pena que nunca tenho tempo de parar para assistir. O som vai surgindo devagarinho quando cruzo a catraca que liga o metrô à CPTM, aumenta de volume conforme eu me aproximo da escada (ao lado do piano) e vai diminuindo no ritmo em que a escada rolante me afasta daquele andar, rumo à plataforma. Que pena. Um dia eu venho mais cedo, para ouvir mais um pouco... Um dia...

***

Ao chegar na estação Santo André - Prefeito Celso Daniel, eu poderia ir a pé até o trabalho, mas não vou. No primeiro dia, me disseram que é perigoso demais: foram tantos assaltos no trecho entre a estação e a universidade, que decidiram colocar um ônibus gratuito para fazer esse percurso. Recomendaram-me muito cuidado, só ir a pé se estiver acompanhada, etc. etc.

O problema é que o ônibus, que em teoria passa a cada 10 minutos ou menos, também demora. Demora porque pega trânsito, porque não tem onde parar, porque o número de alunos aumentou consideravelmente e não colocaram mais ônibus, e como são veículos de viagem, não vai ninguém de pé. Mesmo chegando 7:45 na estação, chego no trabalho só umas 8:15. Ou mais.

Dizem que a pé, eu chegaria em 10 minutos. Um dia eu tentei. Mas com minha deficiência espacial, não consegui achar um meio de atravessar o rio. Eu via a universidade, aquele prédio alto, logo ali na frente, mas não achei nenhum modo conveniente de chegar até lá. Foi quando vi o busão passar e corri para o ponto. Achei melhor ir pelo caminho certo. Um dia eu aprendo a ir a pé. Um dia...

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Chegando na estação Tamanduateí, nem ouvi som de piano. Logo na minha cara, um cartaz: "Os trens da CPTM pararam de circular por tempo indeterminado". E agora?

Fui até a SSO. Existe algum ônibus daqui para Santo André?

- Tem um ônibus pra Santo André que sai de Sacomã, moça, mas não sei se você vai conseguir pegar. Está circulando esporadicamente, porque a EMTU também está em greve.

Eu já estava pensando em voltar para casa, quando um rapaz me chamou. Ia para o mesmo lugar que eu, organizou um grupinho para dividir um táxi. Fomos todos para a avenida. Levamos um tempo para arranjar o carro, porque em dia de greve, todo mundo tem ideias parecidas. Mas conseguimos um motorista legal, que topou levar nós cinco. Sim, cinco: um no banco da frente, quatro no banco de trás, apertadinhos.

Fomos conversando sobre psicologia, engenharia, loucura, suicídio, políticas públicas... Um cara comentou que esse não é o tipo de papo que ele teria numa mesa de bar. É bixo, tinha que ser. Desde que entrei na graduação, comecei a achar comum falar de nerdices na mesa de bar, na da cantina, na da biblioteca, na da cozinha... Um dia ele acostuma.

Fui uma das poucas do meu setor que conseguiram aparecer para trabalhar. Um dia de silêncio no trabalho, exceção à regra.

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Ok, as viagens de todo dia são interessantes. Voltei a vivenciar a realidade das ruas, e não o mundo alienado de dentro de um automóvel particular, ambientado com as músicas que quero ouvir e vários objetos pessoais espalhados do porta-luvas ao porta-malas.

Sim, adoro viajar, mas não todo dia. Não por obrigação. Não preocupada com as mil coisas que eu deveria estar fazendo enquanto espero o 477P-10, o 476o Novo Trem do Metrô, o trem véio da CPTM que passou por cirurgia plástica, o busão gratuito e desorganizado da universidade...

Resultado: lá vou eu para a oitava mudança, desde 2003. Um dia eu conto para uma outra mocinha no ponto de ônibus sobre essa nova aventura.

Só não sei por que as pessoas não acreditam quando digo que não gosto de mudar de casa! É sério, gente: sou uma canceriana!

Um comentário:

Anônimo disse...

Meu irmão, que mora em SP, comentou sobre a greve dos trens e de como o metrô ficou lotado (mais do que já é) e de sua dificuldade em chegar ao trabalho.
***
O que vou dizer é meio que chover no molhado, mas vamos lá: Nós acabamos fazendo parte de uma grande engrenagem e (se não formos atentos) ficamos presos a uma situação rotineira que pode nos tirar o entusiasmo (uma das coisas que tenho medo é perder essa capacidade).
Felizmente, muitos não se tornam conformados. Mudam!; muitos se 'dão o direito de'; muitos realizam o prometido para aquele 'um dia...'.
Ótimo post!