quarta-feira, 19 de julho de 2017

Experiências do sensível. Esperma divino. Raízes nômades.

De lá pra cá, tanta coisa aconteceu! Mudei de estado. Mudei de emprego. Tornei-me mãe. Uau, tornei-me mãe!

E nada de retomar o blog, ora por falta de inspiração, ora por falta de assunto, ora por falta de tempo.

Mas eis que surgiu uma necessidade! Aqui estou, na Universidade Federal do Sul da Bahia, com o desafio de ser docente do componente curricular Experiências do Sensível, que tem por objetivos:

  • Permitir a reconexão de elementos separados pela visão tradicional da ciência, quais corpo e mente, emoção e razão, cultura e natureza, arte e ciência.
  • Compreender a experiência sensível como desencadeadora das ações estéticas e das investigações científicas e humanísticas.
  • Desenvolver a sensibilidade às formas, aos símbolos, à vivência do território.
  • Construir um ambiente de sensibilidade no convívio que promova a ética e a solidariedade.
  • Contribuir com o processo de afiliação dos estudantes à UFSB.


Eis que a avaliação desse componente curricular é um diário de bordo, definido da seguinte forma:

"O Diário de Bordo , como o próprio nome declara, é o diário que cada estudante realizará, ao longo do quadrimestre, para acompanhar, alimentar, reverberar, .... o fluxo de experiências que o componente provocará.
O diário, é por sua natureza, uma criação livre. Ele pode ser realizado em formato digital ou ser um objeto concreto (um caderno, por exemplo).
Ele deve conter registros, igualmente livres, das experiências vivenciadas ao longo do quadrimestres (nos CCs em tela), mas, ao mesmo tempo, pode conter registros de outras experiências, não necessariamente realizadas na universidade, mas que @ estudante passa a observar/ler/vivenciar, a partir daquela mesma sensibilidade que o CC ES se propõe a exercitar. 
É vivamente aconselhado que cada estudante multiplique as formas de expressão/comunicação das suas vivências. Isso significa que o uso da escrita e da imagem (em suas múltiplas formas), é bem vindo, assim como outros artefatos, sempre que permitam reconhecer uma narrativa do que foi vivido pel@ autor@."

Eis que acredito que, num componente desta natureza, eu também preciso fazer meu diário de bordo. Sim, porque se sou uma participante destas experiências, nada mais justo do que o meu relato ser também compartilhado.

Eu poderia ter feito outro blog, claro. Mas é neste aqui que estão as minhas experiências sensíveis e as minhas sensibilidades experientes. E assim, que seja: os/as estudantes vão descobrir que têm uma professora meio doidinha, que costuma sair viajando por aí, nos dois sentidos.

* * *

A primeira aula foi linda.

Cheguei 45 minutos atrasada. Na 1a aula! Sim, isso é vergonhoso. Não, não é meu habitual. Mas lá estava eu, com uma neném doente que não come e só quer ficar grudada no tetê, com uma casa nova cheia de caixas espalhadas e na qual mal encontro minhas calcinhas porque está tudo encaixotado, com visita da sobrinha em casa, sem saber o que fazer para o almoço, com a faxineira perguntando o que fazer com aquelas roupas jogadas num canto e aquelas comidas estragando noutro canto, se tem limpa-vidros, ... Rapaz, a vida cotidiana tem mesmo me atropelado! É muito mais rápida que eu. Quando olhei no relógio, susto: 14h! Meldelz, eu já deveria estar lá, na UFSB, na sala de aula!!!

Lá estavam eles, me esperando (ufa! achei que já teriam caído fora). Receberam muito bem a proposta do componente curricular. Responderam lindamente às perguntas estranhas que propus, como por exemplo: O que é beleza? Como explicar a uma pessoa cega congênita o que são estrelas? Como definir para uma criança o que é "ancião"?

Contei coisas sobre mim, meio bobas, mas que fazem parte de quem sou: como vim parar na Bahia, por que atrasei 45 minutos, por que virei corinthiana quando tinha uns cinco anos de idade, por aí. Soube de coisas sobre eles. Por exemplo, que uma estudante acha a UFSB uma universidade fofa! Que um estudante, quando criança, acreditava que o barulho do tico-tico dele na grama se chamava feriado.

Começamos!

* * *

Dia 16 de julho comemora-se a grande efeméride da humanidade: meu aniversário. Tradicionalmente, minha mãe (paulistana, moradora de Campinas - SP) aparece aqui, para comemorar comigo. Fomos a Itacaré.

Friozinho: não entrei na água. Sou paulista, sim, mas três anos de baianidade já mudaram minha percepção de temperatura (alguém sabe como isso acontece? Que mecanismos estão envolvidos nesse processo do corpo se habituar com mais frio ou mais calor?). Três anos atrás, eu iria para o mar sem pensar duas vezes. Mas agora é 2017.

Em um certo momento, enquanto a vovó e o papai tentavam fazer a bebê dodói comer alguma coisa, tive que me afastar para ela esquecer o tetê e prestar atenção à colher. E fui andando sozinha, com os pés na água do mar, na praia da Concha. Pisando naquela espuma gelada das ondas.

Lembrei de uma história da mitologia grega. Conta-se que Zeus, quando enfrentou seu pai, Cronos, cortou-lhe os testículos. O esperma caiu no mar e formou a espuma das ondas. Dessa espuma é que saiu Afrodite, a deusa do amor.




De fato, aquela espuma consistente, branquíssima, bem que poderia ser esperma. Constatação meio nojenta, talvez, mas só pelo paradigma judaico-cristão de que sexo deve ser visto com nojo. Por que a semente que pode criar um ser humano - ou uma deusa! - seria nojenta? Ainda mais se for esperma divino, esperma de Cronos, o deus do tempo... talvez valesse a pena deixar-me fertilizar. Engravidar de tempo, já pensou?

Fui caminhando até a ponta onde fica o farol, olhando para as marcas que meus pés deixavam quando afundavam na areia molhada. Fui criando um poema:

Espuma das ondas
Donde rebentou o tempo
Semente do amor

E aí a ideia acabou. Como continuar? Mas espera... não precisa de continuação. A ideia está completa! É um hai-cai.

* * *

A atividade para ser realizada até amanhã é a seguinte: recolher um pouco de terra de um local que seja especial para você. Colocá-la em uma caixa de fósforos. Escrever um texto explicando o significado desse lugar para você.

Segue aqui meu texto:

A terra que trago para a aula é de um vaso de plantas que tem aqui na varanda do meu novo apartamento. E aí vocês vão pensar: como assim, o lugar importante para você é um vaso?!

Explico: é o que há de mais próximo de minhas raízes nômades.

Comprei esse vaso em São Paulo, no início de 2010. Eu havia saído do apartamento que dividia com uma colega, pois decidi morar só. Após 7 anos dividindo espaços domésticos em repúblicas, eu já tinha dinheiro para pagar um aluguel e sentia muita necessidade de ter um espaço só meu, uma rotina só minha, de poder fazer bagunça sem levar bronca e escolher sozinha a disposição dos móveis.

Meu novo apartamento tinha uma varanda bastante ensolarada e arejada e comecei a plantar coisas e criar minhocas para compostagem de material orgânico. Foi numa visita a uma floricultura que encontrei esse lindo lírio branco e decidi levá-lo comigo.

Mal sabia eu que ao me ver sozinha nesse novo espaço que criei, eu entraria na maior crise pessoal pela qual já passei. Transformei toda a minha personalidade e ressignifiquei o que eu queria da vida. Esse vaso de lírios me acompanhou em todo esse processo, quando eu afofava a terra, regava, colocava adubo e pensava na vida, tentando me manter minimamente sã pelo contato com a natureza. A pouca natureza que cabia numa varanda de apartamento na maior megalópole do país.

Ao fim da crise, mudei de cidade. Fui morar em Campinas, trabalhar em Valinhos. Depois mudei de novo: fui morar em Santo André, trabalhar na UFABC, agora dividindo o apartamento com o então namorado, que depois virou marido, e mudamos de apartamento outra vez em 2013.

Em 2014, passei no concurso da UFSB e mudamos juntos para a Bahia. Eu, o marido e o vaso de lírios, que veio no nosso carro, dois dias de viagem. Outras plantinhas também vieram, mas mais cedo ou mais tarde, morreram, não aguentaram a mudança de clima, talvez.

Não sei como esse lírio aguentou. Não sei mesmo! Ele sobreviveu até ao tempo em que minha filha nasceu e eu esquecia de regá-lo por semanas. Ia encontrá-lo todo murchinho, parecendo morto, mas assim que eu jogava água, ele ficava novamente todo viçoso.

Mês passado, mudamos de casa outra vez. Ele veio conosco. Parece que está gostando mais daqui, criou mais umas folhas, quem sabe poderá voltar a florir...

Entendem agora por que ele é o mais próximo que tenho de minhas raízes? Ele é a raiz nômade que mudou comigo de casa 5 vezes, resistiu às minhas intensas e profundas mudanças nos últimos 7 anos e... está aqui! Está comigo! Sobrevivendo...

Conclusão: nesta vida cigana, meu território é um vaso!

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