quarta-feira, 19 de julho de 2017

Experiências do sensível. Esperma divino. Raízes nômades.

De lá pra cá, tanta coisa aconteceu! Mudei de estado. Mudei de emprego. Tornei-me mãe. Uau, tornei-me mãe!

E nada de retomar o blog, ora por falta de inspiração, ora por falta de assunto, ora por falta de tempo.

Mas eis que surgiu uma necessidade! Aqui estou, na Universidade Federal do Sul da Bahia, com o desafio de ser docente do componente curricular Experiências do Sensível, que tem por objetivos:

  • Permitir a reconexão de elementos separados pela visão tradicional da ciência, quais corpo e mente, emoção e razão, cultura e natureza, arte e ciência.
  • Compreender a experiência sensível como desencadeadora das ações estéticas e das investigações científicas e humanísticas.
  • Desenvolver a sensibilidade às formas, aos símbolos, à vivência do território.
  • Construir um ambiente de sensibilidade no convívio que promova a ética e a solidariedade.
  • Contribuir com o processo de afiliação dos estudantes à UFSB.


Eis que a avaliação desse componente curricular é um diário de bordo, definido da seguinte forma:

"O Diário de Bordo , como o próprio nome declara, é o diário que cada estudante realizará, ao longo do quadrimestre, para acompanhar, alimentar, reverberar, .... o fluxo de experiências que o componente provocará.
O diário, é por sua natureza, uma criação livre. Ele pode ser realizado em formato digital ou ser um objeto concreto (um caderno, por exemplo).
Ele deve conter registros, igualmente livres, das experiências vivenciadas ao longo do quadrimestres (nos CCs em tela), mas, ao mesmo tempo, pode conter registros de outras experiências, não necessariamente realizadas na universidade, mas que @ estudante passa a observar/ler/vivenciar, a partir daquela mesma sensibilidade que o CC ES se propõe a exercitar. 
É vivamente aconselhado que cada estudante multiplique as formas de expressão/comunicação das suas vivências. Isso significa que o uso da escrita e da imagem (em suas múltiplas formas), é bem vindo, assim como outros artefatos, sempre que permitam reconhecer uma narrativa do que foi vivido pel@ autor@."

Eis que acredito que, num componente desta natureza, eu também preciso fazer meu diário de bordo. Sim, porque se sou uma participante destas experiências, nada mais justo do que o meu relato ser também compartilhado.

Eu poderia ter feito outro blog, claro. Mas é neste aqui que estão as minhas experiências sensíveis e as minhas sensibilidades experientes. E assim, que seja: os/as estudantes vão descobrir que têm uma professora meio doidinha, que costuma sair viajando por aí, nos dois sentidos.

* * *

A primeira aula foi linda.

Cheguei 45 minutos atrasada. Na 1a aula! Sim, isso é vergonhoso. Não, não é meu habitual. Mas lá estava eu, com uma neném doente que não come e só quer ficar grudada no tetê, com uma casa nova cheia de caixas espalhadas e na qual mal encontro minhas calcinhas porque está tudo encaixotado, com visita da sobrinha em casa, sem saber o que fazer para o almoço, com a faxineira perguntando o que fazer com aquelas roupas jogadas num canto e aquelas comidas estragando noutro canto, se tem limpa-vidros, ... Rapaz, a vida cotidiana tem mesmo me atropelado! É muito mais rápida que eu. Quando olhei no relógio, susto: 14h! Meldelz, eu já deveria estar lá, na UFSB, na sala de aula!!!

Lá estavam eles, me esperando (ufa! achei que já teriam caído fora). Receberam muito bem a proposta do componente curricular. Responderam lindamente às perguntas estranhas que propus, como por exemplo: O que é beleza? Como explicar a uma pessoa cega congênita o que são estrelas? Como definir para uma criança o que é "ancião"?

Contei coisas sobre mim, meio bobas, mas que fazem parte de quem sou: como vim parar na Bahia, por que atrasei 45 minutos, por que virei corinthiana quando tinha uns cinco anos de idade, por aí. Soube de coisas sobre eles. Por exemplo, que uma estudante acha a UFSB uma universidade fofa! Que um estudante, quando criança, acreditava que o barulho do tico-tico dele na grama se chamava feriado.

Começamos!

* * *

Dia 16 de julho comemora-se a grande efeméride da humanidade: meu aniversário. Tradicionalmente, minha mãe (paulistana, moradora de Campinas - SP) aparece aqui, para comemorar comigo. Fomos a Itacaré.

Friozinho: não entrei na água. Sou paulista, sim, mas três anos de baianidade já mudaram minha percepção de temperatura (alguém sabe como isso acontece? Que mecanismos estão envolvidos nesse processo do corpo se habituar com mais frio ou mais calor?). Três anos atrás, eu iria para o mar sem pensar duas vezes. Mas agora é 2017.

Em um certo momento, enquanto a vovó e o papai tentavam fazer a bebê dodói comer alguma coisa, tive que me afastar para ela esquecer o tetê e prestar atenção à colher. E fui andando sozinha, com os pés na água do mar, na praia da Concha. Pisando naquela espuma gelada das ondas.

Lembrei de uma história da mitologia grega. Conta-se que Zeus, quando enfrentou seu pai, Cronos, cortou-lhe os testículos. O esperma caiu no mar e formou a espuma das ondas. Dessa espuma é que saiu Afrodite, a deusa do amor.




De fato, aquela espuma consistente, branquíssima, bem que poderia ser esperma. Constatação meio nojenta, talvez, mas só pelo paradigma judaico-cristão de que sexo deve ser visto com nojo. Por que a semente que pode criar um ser humano - ou uma deusa! - seria nojenta? Ainda mais se for esperma divino, esperma de Cronos, o deus do tempo... talvez valesse a pena deixar-me fertilizar. Engravidar de tempo, já pensou?

Fui caminhando até a ponta onde fica o farol, olhando para as marcas que meus pés deixavam quando afundavam na areia molhada. Fui criando um poema:

Espuma das ondas
Donde rebentou o tempo
Semente do amor

E aí a ideia acabou. Como continuar? Mas espera... não precisa de continuação. A ideia está completa! É um hai-cai.

* * *

A atividade para ser realizada até amanhã é a seguinte: recolher um pouco de terra de um local que seja especial para você. Colocá-la em uma caixa de fósforos. Escrever um texto explicando o significado desse lugar para você.

Segue aqui meu texto:

A terra que trago para a aula é de um vaso de plantas que tem aqui na varanda do meu novo apartamento. E aí vocês vão pensar: como assim, o lugar importante para você é um vaso?!

Explico: é o que há de mais próximo de minhas raízes nômades.

Comprei esse vaso em São Paulo, no início de 2010. Eu havia saído do apartamento que dividia com uma colega, pois decidi morar só. Após 7 anos dividindo espaços domésticos em repúblicas, eu já tinha dinheiro para pagar um aluguel e sentia muita necessidade de ter um espaço só meu, uma rotina só minha, de poder fazer bagunça sem levar bronca e escolher sozinha a disposição dos móveis.

Meu novo apartamento tinha uma varanda bastante ensolarada e arejada e comecei a plantar coisas e criar minhocas para compostagem de material orgânico. Foi numa visita a uma floricultura que encontrei esse lindo lírio branco e decidi levá-lo comigo.

Mal sabia eu que ao me ver sozinha nesse novo espaço que criei, eu entraria na maior crise pessoal pela qual já passei. Transformei toda a minha personalidade e ressignifiquei o que eu queria da vida. Esse vaso de lírios me acompanhou em todo esse processo, quando eu afofava a terra, regava, colocava adubo e pensava na vida, tentando me manter minimamente sã pelo contato com a natureza. A pouca natureza que cabia numa varanda de apartamento na maior megalópole do país.

Ao fim da crise, mudei de cidade. Fui morar em Campinas, trabalhar em Valinhos. Depois mudei de novo: fui morar em Santo André, trabalhar na UFABC, agora dividindo o apartamento com o então namorado, que depois virou marido, e mudamos de apartamento outra vez em 2013.

Em 2014, passei no concurso da UFSB e mudamos juntos para a Bahia. Eu, o marido e o vaso de lírios, que veio no nosso carro, dois dias de viagem. Outras plantinhas também vieram, mas mais cedo ou mais tarde, morreram, não aguentaram a mudança de clima, talvez.

Não sei como esse lírio aguentou. Não sei mesmo! Ele sobreviveu até ao tempo em que minha filha nasceu e eu esquecia de regá-lo por semanas. Ia encontrá-lo todo murchinho, parecendo morto, mas assim que eu jogava água, ele ficava novamente todo viçoso.

Mês passado, mudamos de casa outra vez. Ele veio conosco. Parece que está gostando mais daqui, criou mais umas folhas, quem sabe poderá voltar a florir...

Entendem agora por que ele é o mais próximo que tenho de minhas raízes? Ele é a raiz nômade que mudou comigo de casa 5 vezes, resistiu às minhas intensas e profundas mudanças nos últimos 7 anos e... está aqui! Está comigo! Sobrevivendo...

Conclusão: nesta vida cigana, meu território é um vaso!

terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

Lições sobre a Dor - Parte 2


O pé esquerdo estava cada dia mais machucado, em carne viva. E o resto do corpo começou a acompanhá-lo nesse caminho. Aos poucos, foi descamando o couro cabeludo, o umbigo, as dobras atrás dos joelhos e na frente dos cotovelos, a região genital, as mãos. Eu convivia com a dermatite há dezesseis anos, e nunca tinha tido tantas feridas pelo corpo ao mesmo tempo. E eu continuava na fazenda, fazendo trilhas pela Serra do Roncador e contando apenas com a babosa para aliviar tanta ferida. Sem dormir direito, porque com o perdão do trocadilho, à noite, ronca-a-dor...

***

Durante a viagem, três amigos cujo nome começava com a letra M, por acaso (?), me ajudaram a compreender minhas vivências. Neste relato, para simplificar, irei juntá-los no mesmo personagem: M.

Estávamos almoçando e jogando conversa fora quando M. falou que o ser humano precisa transmutar a dor. Na noite seguinte, enquanto eu sincronizava a respiração com o corpo latejante, ouvia a minha voz dentro de mim, dizendo: "transmuta a dor... transmuta a dor..." E perguntei: "certo, mas vou transmutar em quê?". Não tive resposta.

Dias depois, M. falou sobre Tarô, enquanto comíamos espetinhos, tomávamos cerveja e cantávamos no caraoquê. Comentou brevemente que o Arcano 12 está relacionado ao 21, um é apenas o inverso do outro. Sinceramente, eu não me lembrava qual era o Arcano 21 e nem cheguei a perguntar na hora.

***

O Arcano 12, esse sempre me lembro bem, é o Sacrifício. Geralmente é representado por um homem preso pelo pé a uma forca. No Tarô Mitológico, o personagem é Prometeu, aquele que roubou o fogo e o entregou à humanidade. Prometeu tinha o dom de prever o futuro e sabia das consequências que seu ato teria: seria castigado pelo poderoso deus Zeus, permanecendo acorrentado a uma rocha. Todos os dias, uma águia viria comer seu fígado, órgão que se regenera, perpetuando a tortura diária. E mesmo sabendo do martírio a que se sujeitaria, Prometeu concretizou seu plano, sacrificando-se pela humanidade, para que esta evoluísse.

O Enforcado, portanto, representa todos os seres que se deram em holocausto pela humanidade. Inclusive o mais conhecido em nosso meio ocidental: Jesus Cristo. Algo interessante sobre o homem enforcado pelo pé é que ele pode, a qualquer momento, libertar-se, mas não o faz. Sacrifica-se por vontade própria, acreditando em um bem maior. Paradoxalmente, seu martírio é provocado por si mesmo, mas infligido pela divindade.

O Enforcado, Arcano 12 do Tarô Mitológico

***

Na noite seguinte, como em todas as outras, o corpo todo latejando e eu não conseguia dormir. E como em todas as outras noites, consegui relaxar sincronizando a respiração com o ritmo pulsante da dor. Foi quando ouvi minha própria voz repetir a frase de alguns dias atrás: “transmuta a dor... transmuta a dor...”. De repente, inesperadamente, a frase prosseguiu: "Transmuta a Dor em Liberdade...".  Essa nova ordem me trouxe um conforto gostoso, como se fosse colo de mãe. Adormeci com a sensação de que havia ingressado em uma nova fase...

***

Só no dia seguinte é que percebi que a frase fez muito sentido. "Assim como nós liberamos o pecado dos demais", dizia o Pai Nosso em Aramaico, que surgiu na minha cabeça algumas noites atrás. Liberar, libertar, liberdade. "Transmuta a Dor em Liberdade". É mais ou menos o que eu pensava sobre o Arcano 12, certo? Um ato de sacrifício pessoal que liberta a humanidade... Um por Todos!

***

Na manhã seguinte, em um hotel de Barra do Garças, peguei o notebook e abri a pasta em que guardo diversas imagens de tarô. Um dos conjuntos é muito especial. Foi criado por um artista, a partir das imagens relatadas por um homem que regressou de uma viagem bastante significativa, na qual teve a oportunidade de ver cada lâmina de tarô apresentar-se a ele como se fosse uma cena viva e em movimento.

Foi por essas imagens que comecei minha jornada, clicando logo no misterioso número 21. Meus olhos se arregalaram e sorri com a surpresa, quando li:

A LIBERTAÇÃO.

O título encabeçava a imagem de um jovem sentado sobre um cavalo branco, jogando moedas para cima com uma mão e apanhando-as no ar com a outra. Moedas, dinheiro, matéria. Como se o jovem recolhesse as experiências da matéria, que após dar uma voltinha pelo ar, retorna ao ponto inicial, embora em um plano mais avançado do espaço.

No Tarô de Marselha e no Esotérico, é O Louco, ou seja, aquele ser que se lança ao abismo, em uma viagem com paradeiro desconhecido, iniciando um novo ciclo de aventuras... libertando-se, portanto, de um ciclo passado, já apodrecido e gasto. Já no Tarô Egípcio, o Arcano 21 se chama A Transmutação. "Transmuta a Dor em Liberdade"...

O Louco, no Tarô Esotérico

***

O Sacrifício no 12, a Libertação no 21. Tudo se encaixava com as intuições e sincronicidades das conversas com o amigo M. Essa descoberta veio no último dia em que estive no Roncador, como se fosse o encerramento do processo de descobertas sobre a Dor que se iniciou quando cheguei.

Tive dois dias para pensar nisso ao longo da estrada, viajando com os pés por cima do painel, porque se ficassem para baixo, a dor era ainda maior. Surgiam manchas sobre o polímero, formadas pelas minhas secreções amareladas. O assoalho e o banco do veículo cobriram-se todos de casquinhas descamadas do meu pé e da minha cabeça. O corpo todo pulsando de dor, e as lesões já estavam quentes, febris.

Do Mato Grosso a São Paulo, passando por Goiás e Minas Gerais e procurando compreender que sacrifício é esse, e como a Dor pode ser transmutada em Liberdade. Foi assim que regressei, na esperança de que as feridas iriam regredir quando eu chegasse a Santo André. Mas eu estava enganada. O processo estava em pleno andamento e bem longe do fim...

(Continua)

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

Lições sobre a dor - Parte 1

Livrei-me de um peso danado no dia 25/01/2013, quando finalmente terminei de escrever a Tese. E agora sobra tempo para viver e para escrever coisas mais importantes, como as postagens do blog. Mas esse assunto fica para outro dia. Antes, quero continuar do ponto em que parei as aventuras no Mato Grosso, vivenciadas em novembro de 2012. E a continuidade passa por muita dor...

***

Quando cheguei na fazenda, na ponta da Serra do Roncador, meu pé esquerdo estava em retalhos. A pele descamou e ressecou, abrindo fendas que sangravam. Minava da ferida um líquido amarelado, que atraía os mosquitos. Se eu fosse uma pessoa normal, talvez tivesse desistido de ir a uma fazenda onde eu dificilmente teria acesso a serviços de saúde e onde esperava fazer trilhas de horas montanha acima. Mas nunca fui normal...

Eu usava meias o tempo todo, para evitar os mosquitos. Ou melhor, usava meia, no singular: como estava muito calor, decidi cobrir apenas o pé esquerdo. E andava assim, de meia em um pé só e calçando cróquis cor-de-rosa, como se faz em um local em que você não espera, de forma alguma, que sua aparência seja levada em consideração por qualquer pessoa que você venha a encontrar ou conhecer.

Mal cheguei à fazenda, e já estava me coçando. Observava os mosquitos cobrirem de pontos escuros a meia azul do meu pé esquerdo. De repente, surgiu uma moça na qual eu ainda não tinha reparado. Não sei o que foi que me deu a impressão (mais tarde confirmada) de que era uma pessoa muito especial. Talvez fosse o jeito que ela andava e o olhar, que me passavam a confiança de alguém que já conheceu o seu melhor e o seu pior, e agora está sendo simplesmente autêntica. Simplesmente ela mesma... Disse que estava no chalé e teve uma "comunicação" de que eu estaria com algum problema de pele no pé.

Trouxe um pedaço de folha de babosa, aquela planta também conhecida como aloe vera. Ensinou-me a fazer uma espécie de curativo com a planta, fixando-a na pele por baixo da meia. Foi assim que sobrevivi nos próximos oito ou dez dias: enquanto eu usava a babosa, não sentia dor, nem coceira. Chegava a me esquecer da ferida, enquanto andava pelas trilhas montanha acima.

Interessante que, três dias antes, eu havia visitado um casal de amigos. E outra moça muito especial me trouxe uma babosa...

***

Usando babosa, a dor desaparecia durante o dia, mas não deixava de me acompanhar à noite. Aliás, a escuridão e o silêncio a fortaleciam... Eu sentia o pé esquerdo latejar, como se fosse um machucado que alguém limpou com álcool. O corpo todo pulsava, numa agonia viva. Claro que não era possível dormir, e eu morria de inveja do Daniel, que já estava fazia tempo no mundo dos sonhos... Foi assim que passei minhas noites durante pelo menos duas semanas. Talvez umas três ou quatro...

O que fazer quando não se pode dormir, no meio do mato, pulsando de dor? Não há analgésicos, nem televisão, nem videogame, nem computador para distrair a cabeça. Lembrei-me da professora de yoga. Quando fazíamos aqueles asanas complicados, retorcendo todo o corpo, ela dizia: "encontre conforto na dor! Respire!". Resolvi sincronizar minha respiração com o pulso latejante da dor. A dor é só um sentimento como os outros. Como o frio, como o calor, como o tato. Não é melhor, nem pior que outros sentimentos. Então, o melhor aproveitá-la. Respirar, respirar e relaxar.

***

"Uachpoclan raubén uartarréin". Essa frase entrou na minha cabeça, e eu a repetia como se fosse um mantra. Sabia que era parte do Pai Nosso em aramaico, que eu havia aprendido com o Grupo que encontramos na fazenda. Mas não conseguia lembrar o significado, muito menos de madrugada e com dor. Dormi ao som de minha própria voz, que repetia: "Uachpoclan raubén uartarréin" a cada expiração sincronizada com a dor pulsante.

No dia seguinte, é que fui investigar. Se entendi corretamente, a frase significa algo como: "assim como nós liberamos os pecados dos demais". Lembrei-me dos ensinamentos que aprendi com o Grupo: devemos parar de julgar os outros, de falar mal, porque isso os prende aos próprios pecados e acaba por nos prender nos nossos também. O que isso tem a ver com a dor? Talvez muito mais do que eu possa imaginar...

(continua)

terça-feira, 1 de janeiro de 2013

Os 14 piores jeitos de viajar de ônibus

1. Ao lado de uma pessoa fedida.

2. Ao lado de uma pessoa gorda.

3. Ao lado de uma pessoa gorda com uma criança no colo.

4. Ao lado de uma pessoa gorda com uma criança irrequieta no colo.

5. Em um ônibus com janelas que não abrem e sem ar condicionado.

6. Em um ônibus com ar condicionado estilo estou-transportando-pinguins.

7. Ao lado de uma pessoa funkeira sem fone de ouvido.

8. Ao lado de uma pessoa bulinadora.

9. Ao lado de uma pessoa bêbada.

10. Ao lado do banheiro.

11. Em um ônibus vomitado.

12. Perto de um menino peidorreiro.

13. Em um banco quebrado.

14. Sem banco, ou seja: de pé em um ônibus de viagem, porque as passagens se esgotaram.

E aí, qual é o pior?

quarta-feira, 5 de dezembro de 2012

Lições sobre o medo

Muita gente tinha medo de muita coisa lá no Portal do Roncador: a Sra. J. tem medo de gafanhoto, outra senhora tem medo de onça, Daniel tem medo de cobra, eu tenho medo de lugares fechados (que por lá, se traduziam em cavernas). Sim, o cerrado tinha muitos elementos tenebrosos para nós, habitantes da selva de pedras. Mas para alguns habitantes da região, perigoso é viver em São Paulo. Perguntavam sempre dos ataques do PCC, que passavam com frequência nos telejornais, e me pareciam imaginar que basta você sair na esquina de casa para ser assaltado, ou sequestrado para roubarem seus rins.


Maurinho parecia não ter medo de uma coisa, nem de outra. Fazia trilha de bermuda e chinelo. Disseram-nos que ele anda no mato como um índio, sem sequer deixar rastro. Nunca o vi ter medo de cobra, inseto, onça ou qualquer outra coisa. Também não tem medo de gente, como fica claro nas histórias que ele conta sobre suas atuações em fiscalização ambiental. E não tem medo da selva de pedra, pois já esteve em São Paulo e não obedeceu aos conselhos de seu amigo, que recomendou que ele trancasse a janela do quarto ao dormir em uma casa nas quebradas de São Mateus, e que não levasse sua sofisticada máquina fotográfica para passeios de metrô na Praça da Sé. Disse ele que o que tiver que acontecer, vai acontecer e pronto, então não vale à pena ter medo. Mas no meio de uma história sobre um lago dentro de uma caverna, confessou que tem medo de águas profundas e imagina que um bicho pode puxá-lo para baixo.

Bem, é claro que o elemento assustador não está no gafanhoto, nem na cobra, nem na onça, nem na caverna escura e fechada, nem no PCC, nem nas águas profundas... O medo está na gente, e a gente o coloca onde quiser. Geralmente, nosso inconsciente gosta de colocá-lo em elementos pouco conhecidos, como os animais selvagens para o homem urbano e a violência das facções criminosas para o morador de região rural.

E a gente sempre atrai aquilo de que tem medo, talvez para que se torne conhecido. Para nós, bichos de cidade, a natureza arma suas peças e se diverte às nossas custas.

Uma senhora me contou que durante um trabalho de oração, sentiu um "bicho enorme" andar nas costas dela, e ardia muito. Ela ficou desesperada, pensando que bicho seria aquele, mas sem poder verificar, porque estava de mãos dadas com os outros membros do grupo, em plena oração. Ao final, pediu para verificarem o que era e encontrou uma minúscula formiguinha. Quando ela me contou, imaginei um saci-pererê escondido na copa de uma árvore, gargalhando sem parar.

Mas a história mais legal foi a da famosa Sra. J., que tinha medo dos gafanhotos. Enquanto ela esteve por lá, encontrávamos nuvens de gafanhotos por toda a fazenda, e os bichos batiam no rosto da gente, nas mãos, pernas, pés, nariz, olhos, acasalavam sobre a lona da nossa barraca, entravam nos copos de suco e nas panelas de sopa, pulavam no nosso prato de comida e a gente simplesmente tirava os gafanhotos e continuava comendo. A Sra. J. passava o tempo todo assustada e dizendo: "mamãe! mamãe!", enquanto dava saltinhos. Ela partiu aos primeiros raios de sol de segunda-feira. No jantar do mesmo dia, praticamente não víamos gafanhotos na cozinha. Pensando melhor, eles haviam sumido da fazenda toda. Pareciam ter se recolhido na selva. E o saci-pererê dormiu satisfeito lembrando de sua travessura, com a sensação de missão cumprida!


Imagem: André Koehne (http://en.wikipedia.org/wiki/File:Saci_perere.jpg)

sexta-feira, 30 de novembro de 2012

O Rio do Ouro

No dia seguinte, fomos para outra trilha, a do Rio do Ouro. Saindo da fazenda e pegando a BR 158, seguimos por uma estradinha de terra na vila de Vale dos Sonhos, passamos do lado do cemitério e seguimos adiante. Subimos a montanha, continuamos rodando por mais uns bons quilômetros, até chegarmos a uma fazenda onde compramos mussarela fresca e comemos muitas amoras.

Amora, para mim, lembra muito a Escola Cooperativa Curumim, onde estudei dos quatro aos sete anos de idade. Era uma chácara, as salas de aula eram chalés, tinha um pomar e uma amoreira belíssima. Eu e meus amigos gostávamos de subir na amoreira durante o recreio, ficávamos com a boca e os dedos roxos, sem contar as roupas.

Esse lugar em que paramos era a sede da fazenda onde fica o Rio do Ouro. Obtivemos permissão para prosseguir e continuamos andando de carro, agora pelo meio dos pastos, e até por cima de rochas. Por fim, chegamos a um lugar onde Maurinho disse que poderíamos estacionar e seguir a trilha a pé.

Logo vimos a nascente. Fomos descendo por trilhas e pedras, até chegarmos em um dos locais mais impressionantes que já conheci. As fotos não mostram muito bem o panorama, então fiz um vídeo (muito amador, é claro), que anexo a seguir.


O solo parece lunar, de tantas crateras. Na verdade, creio que as rochas são magmáticas de formação relativamente recente, e os geógrafos e geólogos (Samuel?!) me corrijam se eu estiver errada. A cachoeira corre pela fenda entre as pedras, caindo num abismo e continuando, lá embaixo, o rio. Mais à frente, a água forma uma represa natural, um lago calmo e de água transparente. Mesmo nas regiões mais profundas, é possível enxergar a terra por baixo da água. No outro lado do lago, uma pequena praia de areia.

A água é simplesmente deliciosa. O lago é bastante profundo em alguns pontos, não consigo imaginar o quanto, mas acho que caberiam duas ou três de mim empilhadas e submersas. Maurinho nos conduziu pela fenda, o local por onde corre a água que cai das cachoeiras. Claro que nesse ponto, não era possível levar a máquina fotográfica, a menos que eu tivesse capa a prova d'água. Uma pena.

Lago visto de cima

Fomos adentrando pelo meio das rochas, ora nadando, ora subindo pelas pedras. Em alguns pontos, encontramos lindos peixinhos. Em outros, aranhas gigantescas subiam pelo paredão de pedra. Não costumo ter medo de aranhas, mas fiquei bastante atenta para não encostar acidentalmente em nenhuma delas.

Outras pessoas do grupo estavam conosco, inclusive uma das senhoras. Achei bastante interessante quando ela perguntou: "mas espera aí, isso não é o trabalho?". Maurinho respondeu: "isso também é o trabalho!". Mas ela se referia às orações, que seriam feitas na parte rasa do lago. E acabou retornando para lá, pouco depois. Achei engraçada a pergunta, porque do meu ponto de vista, tudo é "o trabalho". O que está fora é como o que está dentro, e entrar em trilhas desconhecidas me coloca em contato com o meu Eu, tanto quanto orar. Mas orar me põe em contato com algo conhecido, enquanto entrar em fendas de pedra por onde correm águas de cachoeiras me põe em contato com o desconhecido. Bem, por isso mesmo é que dá medo, certo? Não importa, o gosto da aventura e da descoberta superaram qualquer receio que eu pudesse estar sentindo.

Em um ponto bem adiante, Maurinho nos mostrou que a pedra formava uma caverna. Havia uma janelinha, por onde ele entrou. Eu era a próxima da fila, mas cavernas são meu ponto fraco. Percebi que a altura era tal que Maurinho conseguia ficar em pé, e ainda sobrava um vão entre a cabeça dele e o teto rochoso. Percebi que era bem arejada. Mas não me senti pronta para enfrentar os sentimentos claustrofóbicos, principalmente considerando que depois que as outras pessoas entrassem, eu não iria conseguir sair rapidamente, se precisasse. Fiquei na janela, olhando meus amigos, que destemidamente curtiam a nova descoberta. Interessante que na parte de baixo da caverna, havia um buraco submerso na água. Entrar por ali é praticamente impossível, por causa da correnteza, mas as pessoas saíram por lá, dando um pequeno mergulho, e imagino que essa sensação deve ter sido maravilhosa.

Voltamos para o lago, quase que sem esforço, porque a correnteza ia nos empurrando de volta. Os colegas que não sabiam nadar ou que por outro motivo não quiseram entrar na fenda nos aguardavam para o trabalho à moda deles. De mãos dadas, oramos, cantamos mantras e sentimos o contato com a água, com o sol, com a natureza. Legal também sentir o contato com o grupo, com as pessoas que estavam lá e que nos acolheram, sem preconceitos, em seu trabalho.

Lago visto de baixo

Ainda seria possível descer ao longo do rio, mas ninguém tinha lembrado de levar comida e todos estavam com fome. O grupo decidiu voltar. Porém, quando subimos, Maurinho percebeu que faltavam algumas pessoas, que eram de outro grupo, também estavam conosco e haviam descido a trilha. Foi buscá-los e ficamos esperando lá em cima.

Sentei para ver a cachoeira e decidi meditar. Fiquei olhando para as águas, fui me tornando muito calma, tranquila, serena. Algumas imagens apareceram nos meus olhos, que a essa altura já estavam fechados. A luz do sol nas pálpebras formavam mandalas. Depois, vi algumas serpentes, ou seriam larvas? Esverdeadas, me lembravam um sonho que tive meses atrás... E uma voz me disse que o problema da ferida que tenho no pé seria "o apego à doença. Desapegue-se... deixe ela ir... como as águas, como a cachoeira, deixe fluir...".

Retornamos à fazenda, compartilhamos novamente de uma boa refeição vegetariana, no meio dos gafanhotos e besouros, que surgiam em grandes nuvens. Estávamos bastante cansados, mas também alegres, serenos. Senti que se ainda havia em mim algum traço da habitual ansiedade, ele dormiu naquele dia e só acordou vários dias depois. E findou o segundo dia aos pés do Roncador.

quinta-feira, 29 de novembro de 2012

Pássaro passageiro


Um pássaro passageiro,
um passo no espaço,
passeando,
eu peço.
Um ponto, um compasso,
eu passo.
Estou de passagem,
eu peco.
Meu pé descalço,
bagaço.
Muita bagagem,
bobagem.

Uma parte está lá,
estou partida.
Jogar outra partida?
Eu passo.
Estou de partida.
Cada encontro com outra parte
é um parto.
Por isso parto.
Busco um porto,
é perto?
Faz parte.

É fogo,
não dá folga
meu pé no fogão.
Precisa afago,
fogueira fagueira,
figueira, figa, fuga,
fé.

Medito no ardor,
conforto na dor.
Leite de pedra,
a unha da fera
raspando o pé
da montanha ferida.
Estou de férias.

O fogo que arde
neste fim de tarde
transmuta a Dor em Liberdade.

(É um parto.)

Um pássaro passageiro
comprou passagem,
um passo no espaço,
neste compasso
eu passo.
Estou de passagem...

Amén!