sexta-feira, 10 de junho de 2011

Di-Djei Motorista

Por falar em transportes, trânsito, longas viagens de casa ao trabalho, lembrei de um tempo em que eu morava no Butantã e trabalhava na Vila Mariana. O texto abaixo é de 2008. A experiência é atual.

Di-Djei Motorista

“Senhor passageiro: Este veículo irá transportá-lo com conforto e segurança. Cuide bem dele.”
Placa pendurada em quase todos os ônibus de São Paulo.

Transportes públicos servem para nos conduzir de um espaço ao outro enquanto aproveitamos para perder tempo e aumentarmos nossos níveis de irritação com a lotação, o calor, a posição incômoda, os atrasos. Mas devo admitir que têm a vantagem de nos colocar em contato com o mundo. Em São Paulo, as viagens de ônibus são longas. Morando no Butantã e trabalhando na Vila Mariana, um sexto de cada dia meu dedicava-se disciplinadamente a essas viagens: das sete às nove da manhã, para ir; das seis às oito da noite, para voltar.

Eu, que antes ficava enjoada se tentasse ler dentro de veículos em movimento, logo aprendi a ler até de pé – é uma segunda alfabetização: uma mão se agarrava para manter o equilíbrio nas curvas e freadas, enquanto a outra segurava o livro aberto diante do rosto e trocava as páginas quando precisava. Mas a realidade era também um livro interessante de se ler e muitas vezes roubava minha atenção das páginas de papel que eu segurava. Há todo tipo de gente dentro dos ônibus: Deus é um ótimo criador de personagens e por isso, em vez de viajar praguejando, eu lia movimentarem-se onibusmente as cenas da Divina Obra Literária.

Foi assim no dia em que a volta demorou três horas, em vez de duas. Saí da empresa, seis da tarde, como sempre. Já estava escuro. Ponto de ônibus da Pedro de Toledo, cheio de gente. O ônibus parou seis e dez e formou-se a longa fila de passageiros entrando e passando a catraca. Chegou em bom horário, pensei, oito e pouco estarei em casa. Mas São Paulo adora desafiar as previsões e logo conseguiu desmanchar a minha.

Rodamos uma quadra. Paramos. Congestionamento. Normal, tem todos os dias. Não... Tá diferente... Pior que o normal. Dez minutos depois, ainda estávamos uma quadra adiante do ponto em que embarquei. O motorista desligou o motor: mau sinal. Significa que sim, tá tudo fudido, mesmo. Cansada de olhar pela janela para uma paisagem que não se movia, peguei na pasta os rascunhos da dissertação de mestrado e uma caneta dentro da bolsa. Se com o ônibus em movimento eu conseguia ler, com ele parado dava até para escrever.

Cerca de meia hora revisando a dissertação, fazendo anotações, reformulando trechos me conduziram duas ou três quadras para a frente, ainda na Pedro de Toledo. Quando o ônibus andava, eu levantava a ponta da caneta do papel e voltava a pousá-la na folha uns dois metros para a frente, quando já era possível escrever.

A luz do ônibus apagou. Olhei para o motorista, que estava logo à minha frente – eu havia sentado nos bancos da parte dianteira do ônibus, aqueles que ficam antes da catraca. No veículo em que eu estava, o motorista morava dentro de uma cabine formada por uma cortininha florida e umas cordas de varal. Mas ele havia aberto a cortina e, espichado sobre o banco, se espreguiçava, esticando as pernas, os pés em cima do painel. De fato, congestionamento deve ser um ótimo intervalo para um cochilo. Mas, infelizmente para mim, eu já não podia escrever, nem ler: muito escuro.

Que fazer? Mudar para minha outra brincadeira: observar as pessoas, coisa que dá para fazer no claro ou no escuro. Uma moça novinha, dessas de piercing e cabelo curtinho, continuava lendo, mesmo sem luz. Forçava a vista. Tinha um rapaz que chegou a reclamar com o outro do lado: “Eita, agora o cara ainda apaga a luz e dorme. Nem dá pra eu continuar lendo... Que merda!”. Um homem de calça e camisa sociais extremamente inquieto, falando no celular. “Não, ainda não cheguei em Pinheiros. Tô aqui na Pedro de Toledo ainda. Um puta congestionamento. Ué, que que você qué que eu faça? Essa merda num anda!”. Uma senhora também resolveu telefonar, um pouco atrás de mim. “Vai botando as batata pra cozinhá, quando eu chegá em casa termino a janta. Mais vai demorá... Tá parado aqui no começo, mesmo. Num sei como é o nome da rua, eu num conheço nada aqui, mais o ônibus nem andô direito depois que saiu do terminal. Num sei, parece que vai passá lá na Avenida do Rio Piqueno, daí eu vô a pé pra casa... É... Mais bota as batata no fogo que depois eu termino aí a janta.”. Um adolescente mergulhado no som do MP3 player, que o protegia da realidade tanto quanto um livro costuma me proteger. De longe, dava para ouvir as batidas do surdo da bateria: deve ser rock, pensei eu.

Uma música diferente começava a tocar, fluindo viscosamente de dentro da casinha de cortina do motorista. Pagode. Agora sim, eu mereço! Em todo caso, era engraçada e divertida a atitude. Stress pra quê? Tudo parado, uma imensidão impotentizante de nada pra fazer, o negócio era seguir as sábias palavras de uma conhecida política paulistana – que, por sinal, gabava-se de ter melhorado o trânsito de sua cidade natal: “Relaxa e goza!”. O motorista cantava alto junto com a música e pelo ônibus, algumas pessoas pareciam indignadas. Outras começaram a cantar também, e vi até uma mocinha meio que rebolando sentada no banco.

Um rapaz gritou, lá do fundo: “Abre a porta aí, vai, motorista! Eu quero descê! Chega dessa merda, eu vô a pé!”. O motorista deu um tapinha no botão que controla a porta, o rapaz desceu, mais umas quatro ou cinco pessoas resolveram aproveitar a oportunidade.

Mais um pouquinho de pagode, mais um tapinha em algum botão e de repente pulsava o Techno. Putzputz, eu costumava dizer. O motorista empolgou. Dançava sentado na balada particular improvisada na sua danceteria de cortina. Aumentou o volume. Com as mãos, batucava no painel do ônibus, apagando e acendendo as luzes, no ritmo eletrizante da música. Di-Djei Motorista, a balada estava completa! Abria-se espaço entre o ônibus e o carro da frente, ele nem se dava ao trabalho de religar o motor: apenas soltava o freio e deixava o veículo deslizar, putzputzando o freio com o pé, obrigando todos os passageiros a dançarem com ele.

Muitas caras feias no ônibus: já estava tudo parado e o motorista ainda inventava essas gracinhas. Eu, por minha vez, ria. Ria muito do aparente bom humor do motorista. A cobradora também ria, e vez ou outra nós trocávamos olhares sorridentes. Esse putzputz congestionado, que animava metade do ônibus e deixava ainda mais irritada a outra metade, nos conduziu até o final da Pedro de Toledo, onde um caminho vazio milagrosamente abriu-se à nossa frente. Avenida Quarto Centenário quase limpa: enxergavam-se áreas grandes de asfalto, em vez de um tapete de carros, como se via na rua anterior. O motorista, então, resolveu recuperar o tempo perdido: ligou o motor e socou o pé!

Ônibus rápido tem também que parar rápido – e são muitas as paradas de um ônibus. Há os semáforos, os pontos, os barbeiros... Tudo contribui para a alta necessidade do pé se enfiar no freio. Cada freada brusca era seguida por uma cara feia do motorista, que certamente preferia que ninguém descesse nem subisse no ônibus, até chegar no tão-periférico Vila Dalva, onde morava o ponto final.

A balada cada vez mais frenética, o putzputz acelerava o motor do veículo, as luzes agora piscando apenas nos intervalos – que nos pareciam muito mais longos que o normal – dos semáforos e paradas nos pontos. Cansada, quase o tempo todo no escuro, meus olhos foram pesando. Adormeci.

Desadormeci putzputzantemente em Pinheiros, agora sem luzes piscando. O corredor do ônibus estava cheio de gente de pé e agradeci a Seilaquém por estar sentada. Quando um ônibus demora a passar, os passageiros vão brotando nos pontos. O primeiro veículo que passa fica, obviamente, insuportavelmente lotado. Parecia ser o nosso caso.

Grito repentino: “Vai, seu Filhadaputa! Não ficou na minha traseira, buzinando? Agora vai, que eu que vô atrais colado na tua traseira tamém!”. A balada ambulante não era suficiente para sossegar os ânimos do motorista, que agora não me parecia tão calmo quanto quando alongou os pés por cima do painel. Tomamos parte numa perseguição ao Filhadaputa. O ônibus tentava se meter na bunda do carro dele – talvez impulsionado por uma sádica fantasia inconsciente. O Filhadaputa tentava escapar, mudando de faixa, mas o ônibus mudava junto, coladinho atrás. Nos semáforos, o pára-choques dianteiro do ônibus aproximava-se vigorosamente do pára-choques traseiro do Filhadaputa, tentando conquistá-lo, e eu já quase certa de que, mais cedo ou mais tarde, rolaria um beijo. Até que o Filhadaputa virou à esquerda e o ônibus, obrigado a seguir o itinerário da linha, continuou em frente, triste pelo não contato com seu objeto de desejo. Escapou o Filhadaputa! “Pronto, dei uma lição nele!”, finalizou o motorista.

Duas horas e meia de viagem. O estômago já doendo da fome de quem almoçou sete horas atrás. A bexiga cheia e em ônibus urbano não tem banheiro, apesar das viagens normalmente demorarem mais que uma viagem intermunicipal. Eu assustada com a velocidade, as freadas bruscas, as curvas que faziam o veículo se inclinar, quase capotando, enquanto o motorista procurava chegar logo ao ponto final onde, provavelmente, o final do expediente o aguardava ansiosamente. Sim, eu assustada com a velocidade e ao mesmo tempo aliviada porque a cada espaço per-corrido, diminuía o espaço que me separava de casa.

Três horas depois de pegar o ônibus na Pedro de Toledo, eu me espremia entre as pessoas para conseguir passar pela catraca e alcançar alguma das portas de saída. Os passageiros mal-humorados, para passar para o lado de fora era preciso espremê-los e pisar num tapete de pés que disputavam entre si escassa área de chão. Finalmente, consegui me desentalar e saltar do ônibus na Corifeu. Ar fresco... alívio!
Subi a ladeira para casa, exausta, prestes a cozinhar o jantar, comer, lavar a louça, tomar banho e dormir. Dali menos de doze horas, eu pegaria de novo a mesma linha, desta vez no outro sentido, para voltar ao trabalho. É... preciso mudar de casa!

Um comentário:

Tony Marle disse...

Gabriela,

Valeu por colocar Peru via Acre como seu favoritos, estou a sua disposição para qualquer duvida.

Um grande abraço.

Tony Marle
Admin. Blog Peru via Acre
www.peruviaacre.blogspot.com