quarta-feira, 21 de setembro de 2011

O chamado

Enquanto eu assistia ao show do Teatro Mágico, em homenagem à comemoração dos 5 anos de vida de uma certa Universidade, eu não imaginava que vinte e quatro horas depois eu estaria no alto de um morro, sentindo um vento gelado arrepiar os pêlos dos meus ossos e segurando nas mãos uma vela, enquanto assistia a um senhor grisalho conversar com Ela... que eu não podia ver.

O telefone tocou, mais de dez da noite. Era um chamado. Eu tinha compromissos no dia seguinte, mas desmarquei tudo. Quando a Mãe chama, a gente precisa atender.

***

Existem três caminhos para alcançar a Iluminação, dizia um orientador espiritual.

Janana é o caminho da Inteligência. Bhakti, o da Devoção. Karma, o da Vontade. Os três conduzem à Iluminação.

Por Jnana, a gente conhece as coisas e busca chegar a Deus (entenda-se Deus como o seu Eu Interno) pelo estudo, pelo conhecimento. Por Bhakti, a gente chega a Deus pelo amor, pela fé incondicional, por doar-se ao próximo. E por Karma, chegamos a Deus pelo trabalho, disciplina e perseverança.

Jnana e Karma, OK, eu pensava. Estudar e conhecer é muito fácil, é a melhor coisa do mundo. Trabalhar é sossegado também. Mas esse negócio de devoção eu não entendo. Não dá pra compreender como alguém pode ter fé incondicional e acreditar em algo que não compreende. Também não dá pra entender como alguém pode simplesmente amar a Tudo e a Todos e fazer o Bem pelo Bem, se em todo bem está implícito o mal, e vice-versa.

Na média da humanidade, geralmente Bhakti é o caminho mais procurado. As pessoas vão à igreja e aprendem a amar ao próximo como a si mesmo, perdoar, oferecer a outra face, doar-se ao próximo. Tudo tão simples, que nunca compreendi. Claro que não, porque não há o que compreender. É preciso apenas praticar. Mas praticar como, se não entendo?!

Sim, Bhakti é o grande mistério!

***

Quando abri a porta do carro e respirei, o ar era tão leve, que me preencheu com serenidade (tão logo acabou a crise de espirros!). Eu estava em uma fazenda em Minas Gerais, com muitos cachorros, umas plantas florindo antecipadamente a primavera, uns passarinhos coloridos. Pouco tempo depois, re-conheci quem eu nunca vi, mas já ouço e leio há quase um ano e meio.

- Que bom que atenderam ao chamado.

Após um jantar vegano (ou seja, sem nenhum produto de origem animal), aconselharam-me a vestir muitos agasalhos.

- Quando Ela aparece, fica ainda mais frio! Não sei por quê!

Subindo a trilha, eu enxergava muito mais gente do que havia ali, de fato. Sim, outros seres também subiam, naquela escuridão que se acentuava pelos meus olhos saturados de luz da vela, cuidando para que ela não se apagasse. Em meio às brumas, um sussurro:

- Veja! É ali, naquela arvorezinha, que Ela costuma se manifestar.

***

- Você já reparou que sua impaciência é gritante? - Disse a terapeuta, na quarta-feira.

- Apesar da sua impaciência gritante... - Disse meu amigo, no sábado.

***

Não levei relógio e minha noção de tempo se apaga em Minas Gerais... então eu não sabia há quanto tempo estava ali, ouvindo aquela oração coletiva e sem conseguir pronunciar uma só palavra.

- Agora silêncio, porque Ela já está chegando.

Uma rajada de vento frio bateu nas minhas costas e tive a impressão de que me transpassou. Pela única vez naquela noite, a chama da vela que eu segurava se apagou.

***

- Vamos orar. Vamos pedir misericórdia. Ela disse que devemos orar, para prevenir o pior. O ano que vem será decisivo.

- MISERICÓRDIA! MISERICÓRDIA! Misericórdia para toda la humanidad!

E a voz intrometida dentro da minha cabeça perguntou: "O que é misericórdia?". Respondi: "Hummm... você tem um dicionário?".

***

- Cordeiro de Deus, retirai os pecados do mundo, tende piedade de nós.

Ouvi isso nas poucas vezes em que estive em uma missa. Desde criança, sempre fui maldosa. E me perguntava: "Tá! E por que Ele faria isso?!".

O pensamento é inusitado, mas tem base em um raciocínio simples: o que a humanidade ganha se for sempre perdoada? Como é que poderia aprender com os próprios erros? Como mandar para o céu um pecador, sem que ele tenha pago a dívida? Não faz sentido... não faz...

E agora toda essa gente, aí, pedindo misericórdia à Mãe Divina. Eu tentei, sim, tentei acompanhar a oração, mas cada palavra que eu dizia me soava falsa. E a voz na minha cabeça, aquela mesma voz que me perguntou o que é misericórdia, acrescentou: "Cala a boca. Desde quando a gente quer misericórdia pra humanidade? A humanidade não faz por merecer o perdão. E sabemos que estamos incluídos nisso: já aprontamos demais, não é? Desde que o mundo é mundo, estamos aqui, contribuindo para tudo se acabar. Pois é. Melhor mesmo é todo mundo se f***. Só depois poderá vir a redenção..."

***

E em meio a tanta gente orando para atender ao pedido d'Ela, eu me mantinha irracionalmente calada. Os olhos pesados, quase se fechando. Eu me retorcendo por dentro e pensando: "cadê o café? Sério mesmo que estou tão viciada em cafeína?".

(Uma pessoa que tem impaciência gritante não pode tomar café. Muito menos viciar nele. O efeito é semelhante ao da cocaína.)

As pálpebras pesadas, eu ainda ouvia o que aquela gente dizia, coisas sobre misericórdia, redenção, doar-se, orar, não comer carne... Mas tudo parecia uma realidade paralela, que no infinito se encontrava com a realidade interna. Meus olhos se fixaram no ponto de intersecção entre o que está dentro e o que está fora. E então, uma outra voz falou. Era bem mais serena e calma que a primeira, quase um acalanto.

- Eu não acredito em misericórdia e perdão, porque não perdoo ninguém. E acho que se não consigo perdoar, o perdão não existe.

Algo se aqueceu dentro de mim.

- Mas isso é mesmo um absurdo, não? - Continuou a mesma voz. - É claro que o perdão existe. Se tanta gente perdoa, por que Deus(a) não há de perdoar? O perdão está em todo lugar, inclusive dentro de mim. Por que foi que eu o bloqueei?

***

Eu tinha dormido muito bem à noite, mas no carro, de volta ao mundo da impaciência gritante de Santo André, o sono me pegava outra vez. Tentei manter os olhos abertos, mas de repente, eu olhava em volta e já tinha rodado cem quilômetros com a cabeça pendendo sobre os ombros.

Pois é. Cada vez que meus olhos se abriam, eu ouvia tudo de novo: Mas o que é misericórdia? Cadê o dicionário? Como é que se perdoa? É justo perdoar? Existe perdão para quem não perdoa?!

Bhakti é o grande mistério!

4 comentários:

Tania regina Contreiras disse...

Gabi, você escreve tão bem, sua escrita é envolvente, a gente vai, vai, vai e...acabou? Que pena! :-)
Beijos,

Gabi disse...

Não acabou, Tania. Estou aguardando surgirem as cenas dos próximos capítulos... Assim que eu souber a continuação, conto para vocês!
Beijos!

A_Believe disse...

Fiquei na dúvida (sinceramente) se a história é real ou fictícia. E, honestamente, acho que é real. De qualquer forma, acho que a principal parte da fé é acreditar em algo que não se entende e não se consegue explicar. O que não é tarefa fácil ;)

Gabi disse...

Às vezes a vida é mesmo surreal! ;-)