quinta-feira, 28 de abril de 2011

A sombra da cidade

O que você vê na foto abaixo?


São camelos? Camelos pretos? Quase! As formas pretas que aparentam ser os camelos são, na verdade, as sombras deles. Os animais, em si, são os risquinhos brancos logo abaixo das sombras. A foto foi tirada ao entardecer, em um ângulo que permitiu essa bonita e esclarecedora confusão. Às vezes, a sombra permite que enxerguemos as formas de uma maneira mais próxima da realidade.

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Quando eu soube que ia trabalhar na Prefeitura Municipal de Valinhos, tudo o que eu conhecia era o estereótipo que todos os campineiros têm do município vizinho: é uma cidade muito rica, com condomínios luxuosos, ótima qualidade de vida. Ideia essa baseada em fatos históricos... quando o povoado surgiu, era formado por fazendas de grandes barões.

Diz a Wikipedia: "A fazenda Dois Córregos, hoje bairro Dois Córregos, pertenceu ao brigadeiro Luís António de Sousa Queirós, tido como o homem mais rico da capitania, que chegou a possuir, só em Campinas, dezesseis engenhos de açúcar, e ainda pertenceu a Joaquim Policarpo Aranha, barão de Itapura, também abastado fazendeiro em Campinas.". Foram personagens desse tipo que levaram a fama por terem fundado a cidade, e não os escravos que trabalharam nos gigantescos engenhos e que eram, de fato, a força motriz.

Muito mais tarde, pessoas muito ricas de Campinas começaram a se mudar para a cidade vizinha, que além de muito próxima, era tida como mais tranquila, mais gostosa, mais próxima da natureza. Surgiram os condomínios luxuosos, as diversas chácaras e o valor da terra foi subindo a tal ponto, que não vi diferença entre o preço do aluguel em Valinhos e o preço do aluguel nas áreas próximas ao metrô de São Paulo!

A fama de cidade rica e com ótima qualidade de vida é tamanha, que quando digo que atendia em Valinhos pessoas muito pobres, os conhecidos me perguntam: "mas existem pobres em Valinhos?!". Quando digo que atendi pessoas em situação de rua, me perguntam: "mas existem mendigos em Valinhos?!".

Sim, e como existem! Tudo o que vi, no meu trabalho como psicóloga do Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS) de Valinhos foi a sombra da cidade, composta por pobreza, violência, pessoas em situação de rua e uma administração pública que, apesar de ter pessoas muito bem intencionadas, também tem outras que sofrem do ranço do provincianismo, como se tivessem estacionado na época dos barões de café.

Tudo isso eu constato, mas não me queixo: vivenciar a sombra da cidade me deu a oportunidade de ter uma overdose de realidade, que muitas vezes me tirou o sono e me tirou do sério, mas que certamente me deu inspiração para muitos anos de vida e de trabalho. Durante quase seis meses, vivi assim, como se estivesse dentro de um samba do Adoniran Barbosa (que, diga-se de passagem, nasceu em Valinhos!).

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Carl Jung, fundador da psicologia analítica, dizia que todos nós temos uma sombra, que é aquele ponto cego de nós mesmos, a parte que não queremos enxergar, porque traz tudo aquilo que renegamos. Pegando emprestado um trechinho do site Psiqweb:

"Para Jung, a Sombra é o centro do Inconsciente Pessoal, o núcleo do material que foi reprimido da consciência. A Sombra inclui aquelas tendências, desejos, memórias e experiências que são rejeitadas pelo indivíduo como incompatíveis com a Persona e contrárias aos padrões e ideais sociais. Quanto mais forte for nossa Persona, e quanto mais nos identificarmos com ela, mais repudiaremos outras partes de nós mesmos. A Sombra representa aquilo que consideramos inferior em nossa personalidade e também aquilo que negligenciamos e nunca desenvolvemos em nós mesmos. Em sonhos, a Sombra freqüentemente aparece como um animal, um anão, um vagabundo ou qualquer outra figura de categoria mais baixa.".

Carl Gustav Jung, fundador da Psicologia Analítica

A ideia pode parecer difícil para os menos habituados aos conceitos da psicologia analítica, mas é mas simples do que se imagina. Imagine que você pega um objeto qualquer, digamos, um vaso. Imagine que liga uma lanterna e faz a luz incidir sobre ele. O que acontece? Um lado fica completamente iluminado, enquanto o outro fica no breu. Agora, imagine que a luz é a consciência e a escuridão é o desconhecido. É essa a metáfora que Jung usou ao se referir à sombra do ser humano. E acrescentou que o processo de tornar-se Si-Mesmo (ou seja, de tornar-se inteiro, consciente, verdadeiro) envolve conhecer e assimilar a própria sombra.

Afinal, a sombra, em si, não é ruim: ela pode conter características muito importantes, criativas, positivas. E mesmo o que há nela de realmente perigoso precisa ser conhecido, pois o que é melhor: ter o inimigo à sua frente, ou dar as costas a ele?! Cabe a nós, portanto, ter a coragem de olhar de frente para a nossa sombra. Essa costuma ser uma tarefa árdua, dolorosa, espinhosa, mas... falo por experiência própria: quando nos damos a chance de mirar a sombra, o mais comum é surgir o alívio e o pensamento de "ufa! então era isso... só isso!". Segue-se o sentimento gostoso de conciliação com nós mesmos, de acolhimento de uma parte que é bem nossa e que não precisa mais se esconder.

Pois bem, normalmente se pensa na sombra individual, essa que cada indivíduo carrega consigo. No entanto, não é dessa que quero falar. Lance luz sobre uma coletividade de pessoas, tal como os cerca de 105 mil habitantes de Valinhos, e veja a sombra que se forma: a gigantesca sombra para a qual toda uma sociedade se recusa a olhar. Tem-se, então, a sombra coletiva. Recorro à frase de Aristóteles, que se tornou a máxima da psicologia da gestalt: "O todo é maior que a soma das partes", pois a sombra coletiva não me parece ser apenas uma somatória das sombras dos indivíduos e sim, um ente em si mesmo, capaz de influenciar e ser influenciado pelas sombras individuais.

Assim como os indivíduos, a sociedade também reluta em enfrentar a própria sombra. Prefere olhar para o outro lado e levar a vida como se a metade escura do vaso não existisse, fazendo calar os poucos que se atrevem a falar sobre ela. Graças a essa negligência, há alguns (muitos, eu diria) que sucumbem à sombra, tornam-se prisioneiros dela. Estes são vistos como problemas, corpos estranhos que precisam ser expurgados em busca de uma sociedade perfeita.

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Quando falo de Valinhos, falo da cidade que conheci de perto e que me ajudou a perceber coisas das quais eu não tinha clareza anteriormente. Mas o que vi lá, eu poderia ter visto em qualquer outro local que tenha uma alta concentração de seres humanos. E, por isso, as histórias que vivenciei, e que pretendo relatar, provavelmente farão sentido para quem as ler, esteja onde estiver.

Devo confessar que, conforme fui conversando com a sombra coletiva, fui me afeiçoando a ela. Sim, eu GOSTEI de mergulhar na sombra e, por isso, decidi escrever minhas experiências como psicóloga do CREAS de Valinhos.

Nos próximos posts, pretendo relatar fatos reais, embora com nomes fictícios e algumas possíveis alterações para preservar a identidade dos personagens.

Sombra coletiva, eu lhe empresto a minha voz!

Um comentário:

Lucas Nap disse...

Que bom Gabi!
Fico feliz em ter a oportunidade de ler os seus relatos. Como alguém que passou a infância e juventude inteira na parte mais isolada e luminosa da cidade (que não deixava de ter suas próprias pequenas sombras), é bom encarar todo esse lado para qual sempre tapamos os olhos.