segunda-feira, 2 de maio de 2011

Culpa da mulher

Minha primeira impressão de estar num samba do Adoniran surgiu no primeiro mês de trabalho, quando comecei a participar dos atendimentos em grupo a pessoas em situação de rua. Os grupos eram realizados por um assistente social, uma estagiária em assistência social e, a partir de novembro, também por mim, na qualidade de psicóloga.

Era sinceramente divertido ouvir as histórias sobre a realidade das ruas, porque é um lugar pelo qual eu passo quase todos os dias e, mesmo assim, nunca tinha percebido a potencialidade que existe ali. Nas ruas é possível morar, o que inclui comer, dormir, fazer as necessidades fisiológicas, aprender, conversar, usar drogas, transar, fazer amigos, brigar, trabalhar, ter filhos, festejar e tudo o que se pode fazer entre quatro paredes.

Só o que aquelas pessoas não conseguiam era tomar banho e isso criava um efeito indesejável durante os atendimentos em grupo. Imagine colocar numa sala de, no máximo, uns 15 metros quadrados cerca de 6 ou 7 pessoas (às vezes, chegavam a 12!) que moram nas ruas e não tomam banho há semanas. Um cheiro de suor, urina, cachaça, cigarro e doença exalava das bocas e dos poros. Ligávamos o ventilador, que não ajudava muito, e procurávamos transferir a atenção do nariz para o ouvido.

Naquele tempo, essas pessoas nem chegavam a aguardar na recepção, porque uma funcionária considerava que sentir esse cheiro não fazia parte de suas atribuições. Havia também uma ideia aqui e acolá de que não podemos misturar essa gente com outras gentes "de família". E de que eles mesmos poderiam se sentir constrangidos de aguardar atendimento junto a pessoas "normais". Alguns meses depois, houve um movimento em direção à inclusão e o acesso das pessoas em situação de rua passou a ser feito pela recepção. Sim, declaro aqui minha impressão, sem ironia: a assistência social em Valinhos está em constante construção e aperfeiçoamento.

***

Falei tudo isso para contextualizar o a história que vou contar hoje, de um senhor que estava nas ruas há muitos anos e, durante um atendimento em grupo, resolveu contar como é que foi parar nessa situação. Olhando para mim, contou a desgraça de sua vida como quem conta um "causo" qualquer.

- Foi assim, moça... eu morava numa casa, com minha mulher e meus filhos. Todo dia eu ia no bar, tomava uns goró, voltava pra casa e batia na minha mulher. Ela dizia: fica esperto, que um dia te ponho na rua! E no dia seguinte eu ia no bar, tomava uns gole, voltava e batia nela de novo. No dia seguinte ia no bar de novo, tomava umas pinga, voltava e batia nela. Foi assim todo dia, moça. Todo dia eu tomava umas e batia na minha mulher. Ela sempre dizia que ia me botar na rua, mas eu nunca acreditava.

Ele então fez uma pausa, olhou para o outro lado, suspirou. Voltou a olhar para mim e completou:

- Mas cê sabe, né...? Que em mulher a gente tem que acreditar!

Sorri. Estimulei-o a continuar a história:

- E o que aconteceu?

- Um dia cheguei em casa e minhas malas tavam todas na rua. Parece que o Juiz falou que eu não podia mais voltar.

***

Resultado: da noite para o dia, esse senhor passou de "pai de família" para "morador de rua", "mendigo", "indigente". E aí a gente vê como os rótulos são provisórios e imprecisos...

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