sexta-feira, 13 de maio de 2011

A higieni(opoli)zação das cidades

A mais recente grande mobilização no Facebook é o Churrascão dos Diferenciados, em Higienópolis. O motivo do movimento é a recente decisão do Governo do Estado de São Paulo de alterar o local de uma futura estação de metrô, que seria construída na Avenida Angélica, em Higienópolis, cedendo à pressão de moradores, que assinaram um documento formalizando seu desagrado.

Até às 21:40 do dia 12 de maio de 2011 (momento em que escrevo estas linhas), 50.255 pessoas confirmaram presença no Churrascão Modificado (pois o evento do churrasco foi transformado numa manifestação beneficente na praça Vilaboim). Muito mais que os 3.500 moradores de Higienópolis que assinaram o documento posicionando-se contra a estação.

Sou usuária do transporte público e defensora do direito das pessoas circularem por aí da forma mais fácil e menos custosa aos bolsos e ao meio ambiente. Mas hoje, em vez de engrossar o coro dos que defendem o metrô da Av. Angélica, vim apenas falar – mais uma vez – da sombra da cidade.

Convite para o Churrasco da Gente Diferenciada

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Em entrevista à Folha de São Paulo, a psicóloga Guiomar Ferreira disse: "Eu não uso metrô e não usaria. Isso vai acabar com a tradição do bairro. Você já viu o tipo de gente que fica ao redor das estações do metrô? Drogados, mendigos, uma gente diferenciada...". (A profissional envergonha a minha categoria.)

Há também a advogada Anna Claudia de Salles, presidente do Conseg (Conselho Comunitário de Segurança) de Perdizes/Pacaembu, bairro que provavelmente vai abrigar a estação, no lugar de Higienópolis. Essa ilustre senhora disse: "Infelizmente, seremos mais abordados por pessoas flutuantes.".

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– Oi, Gabriela. Eu queria saber se você poderia acompanhar a assistente social em uma abordagem social que precisa ser feita com urgência. O diretor do museu se queixou das pessoas em situação de rua que têm ficado lá. A prefeitura solicita que o CREAS atue.

– Mas eu vou lá para fazer o quê? Pedir para se retirarem? Eu, psicóloga, pedir para as pessoas saírem de um local público? Que direito ou que dever eu tenho de fazer isso?

– Não, não é isso... Vocês só tem que conversar com eles, sugerir que venham ao nosso serviço, para pensarem em alternativas para sair das ruas... O de sempre, sabe?

– Alternativa? Que alternativa eles têm? O que eu posso oferecer a eles de melhor? Não existe um espaço para eles, albergue, república, nada! Eles vão chegar aqui, vão conversar, depois vão voltar para a rua, para o museu, para qualquer outro lugar.

– Não, não é isso... Vá apenas para ver quem está lá, se já está cadastrado em nosso serviço. E ofereça atendimento, fale que estamos aqui para apoiá-los, essas coisas... Veja, é que instâncias superiores estão solicitando...

– Tudo bem. Eu vou. Mas não vou dizer para ninguém sair de lá!

– Certo, fique tranquila, não é isso que estou pedindo a vocês.

– Quem vem nos buscar? Fiquei sabendo que um motorista está de licença médica, o outro se recusa a fazer abordagem social e o outro está levando alguém para uma reunião em outra cidade.

– A Guarda Municipal vai buscar vocês.

– A Guarda Municipal?!! Mas assim fica complicado! Temos tido muito trabalho para desvincular nossa imagem da guarda municipal. As pessoas que atendemos se queixam de sofrer violência por parte da guarda. São papeis que não podem se misturar!

– Peça para os guardas ficarem distantes. Eles só têm que levar vocês até lá, não precisam ir com vocês abordar as pessoas. Diga para ficarem longe, e vocês vão procurá-los quando acabarem a abordagem.

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Em poucos minutos, uma Kombi da prefeitura estacionou na nossa porta. Respirei mais aliviada quando vi que não era uma viatura da GM, nem tinha qualquer coisa escrita que indicasse vínculo com a GM. Entrei no veículo com a assistente social, carregando um caderno, uma caneta e alguns papeis com o endereço do CREAS.

O problema é que eu sentia que nada disso ia adiantar: a maioria das pessoas em situação de rua já frequentava nosso serviço. Provavelmente, daríamos de cara com nossos velhos conhecidos. E eu ficava imaginando o que poderia dizer. “Oi, tudo bem? Sua noite foi boa? Quer um marmitex?”.

Entramos no museu e não havia nada de diferente. Apenas alguns funcionários limpavam o local. Não encontramos sequer um visitante.

– Por favor, senhora... Nós gostaríamos de falar com o diretor do museu.

– Ele não se encontra no momento.

– Disseram que havia algumas pessoas em situação de rua aqui...

– Ah, sim! Estava um monte de gente aqui hoje cedo, a maior bagunça! Uma sujeira danada! Eles dormem aqui, usam droga, largam seringa jogada, mijam e cagam no chão... Depois que foram embora, sobrou um monte de coisa, até calcinha tinha ali, pendurada na cerca! Vocês são da prefeitura? Olha, tem que vir cedo, umas 6h da manhã, daí vocês pegam eles! A prefeitura têm que fazer as coisas direito, eu morro de medo, tem uns aí que têm doença, AIDS... Vai passar pra gente, que trabalha aqui!

– Então eles já foram, senhora?

– Já foram, mas vem amanhã bem cedinho, umas 6 ou 7 horas, que vocês pegam eles! A prefeitura tem que fazer alguma coisa! Eu acho que tem que ser assim: quem não é da cidade, manda embora! Faz que nem antigamente, bota dentro de uma Kombi e solta em Itatiba! Acaba logo com o problema!

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Enfiar numa Kombi e soltar em Itatiba acaba logo com o problema... Não foi a primeira vez que ouvi isso. Nos grupos de pessoas em situação de rua, os que estavam nessa condição há mais de dois anos sempre falavam de operações feitas pela guarda municipal e por uma suposta assistente social (pelo que apurei depois, era uma funcionária comissionada que, definitivamente, não era assistente social). Nessas ocasiões, eles eram obrigados a entrar numa Kombi que os deixava na divisa dos municípios de Valinhos e Itatiba. A informação foi confirmada por diversos funcionários da assistência social da cidade. Disseram-me que uma vez, isso saiu no jornal.

Cerca de um ou dois anos atrás, foi surgindo uma nova forma de atendimento e as operações para levar pessoas em situação de rua para Itatiba foram encerradas. Mas muitos ilustres moradores do município de Valinhos ainda acreditam que essa é a melhor solução para deixar as pessoas de bem livres de “mendigos”, “pedintes”, “indigentes”.

Se não fosse tão politicamente incorreto, diriam que o melhor seria haver na cidade uma câmara de gás.

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Pessoas diferenciadas, pessoas flutuantes, pessoas em situação de rua... São eufemismos que deixam o preconceito ainda mais evidente. Lendo as falas da psicóloga e da advogada de Higienópolis, transcritas com aspas, vejo a Sombra da Cidade, desta vez em São Paulo.

As pessoas estão aí, sejam cobertas de luz ou de sombra. Um mendigo, um indigente, um pedinte, uma pessoa diferenciada ou flutuante, um drogado, um camelô, um vendedor ambulante, é também um pai, um trabalhador (normalmente desempregado), um doente e, acima de tudo, um ser humano.

É muito mais conveniente esconder a sombra do que olhar para ela, não é mesmo? Pega o que é sujo e joga fora, limpa, higieniza, tira do alcance do olhar. Mas é justamente dessa maneira que ficamos cada vez mais presos por detrás de muros, cercas eletrificadas, alarmes e vidros com insulfilme, enquanto “pessoas diferenciadas” reivindicam – e confiscam para si – a liberdade.

Enquanto a solução for transportá-los para a cidade vizinha ou mudar de local uma estação de metrô, estaremos apenas deslocando o problema social, temporariamente. Sim, temporariamente, pois como disse um senhor que esmurrou a porta do CREAS durante uns três dias, “Daqui a Campinas eu vou até de joelhos!”. Ou seja, as pessoas se deslocam, mesmo que seja a pé – ou de joelhos.

Aos ilustres moradores de Higienópolis e de Valinhos, ou de qualquer lugar, eis um desafio: encontre uma pessoa flutuante e diferenciada. Converse com ela. Pergunte sobre sua vida. Olhe nos olhos dela enquanto ela fala, mesmo que todo o discurso pareça completamente sem sentido. E agora? Você ainda é o mesmo? Essa experiência foi um diferencial na sua vida?

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