domingo, 26 de dezembro de 2010

Encontros e reencontros - Parte I

O bar do Hostel The Point era um ponto de encontro entre turistas de toda parte que se hospedavam no hotel, oferecendo baladas de vários estilos, jogos, campeonatos, comida e, claro, muito álcool. A principal vantagem, a meu ver, era a conveniência: eu ia lá de bermuda e chinelo, sem bolsa, sem documento, sem dinheiro, porque anotava o consumo na caderneta e pagava no check out, e quando queria dormir era só andar (ou, quem sabe, me arrastar) alguns metros até o meu quarto. Foi lá que comecei a aprender a dançar salsa, que comi alguns lanches quando a fome apertou e o cansaço não permitiu andar até a Plaza de Armas e que fiz alguns amigos, como no episódio que vou contar a seguir.

Eu estava saboreando uma Cusqueña, cerveja pela qual me apaixonei logo no primeiro dia, quando um rapaz de olhos e cabelos claros, pele bronzeada, chamou-me para jogar sinuca.

- I'm sorry, I'm very bad on that.
- There's no problem! I just need a partner.
- Ok, but I don't know how to play.
- I can teach you the rules.
- I know the rules. The problem is I can move the ball on the right direction OR beat it strongly. Doing both things at the same time is impossible to me.
- No problem, we're playing for fun. Let's play with us, I need a partner.

Bar do Hostel The Point


Aceitei o convite mais para me entrosar do que porque, de fato, estivesse afim de jogar. O rapaz estava acelerado, parecia estar sob efeito de algo mais forte que as Cusqueñas que eu tinha visto em suas mãos. Logo comecei a conversar com a dupla rival, também em inglês, até que, após uns cinco minutos de conversa, lembrei de perguntar o nome de um dos rapazes e deu-se o diálogo já relatado no post Uma tarde em Lima:

- Márcio, and you?
- Márcio from Brazil?
- Yes, where are you from?
- Brazil too.
- Ah, que bom, vamo começá tudo dinovo, cumé que cê tá?

Obviamente, eu e meu parceiro perdemos a partida, porque eu sou mesmo um zero à esquerda em qualquer jogo que exija coordenação motora e raciocínio espacial. Pelo menos ele nunca poderá queixar-se de que não avisei. Mas esse episódio me rendeu alguns amigos: Márcio e seus dois companheiros de viagem, com quem eu encontrava pelos corredores e pelo bar do hostel. Por pouco tempo, porque eles logo partiram para outras cidades, como Arequipa e Puno.

***

Dias depois, em Lima, após comer um almoço um tanto quanto indigesto perto da Plaza 2 de Mayo, vi um McDonald's e fiquei com vontade de tomar sorvete para tirar o gosto da boca. Foi então que, no caixa, um rapaz me chamou:

- Gabriela?
- Sí... yo lo conosco?

Era um dos amigos de Márcio que, coincidentemente, comprava sorvete no mesmo lugar e na mesma hora que eu. Fiquei feliz por arranjar companhia, porque Lima é uma cidade grande e a sensação de desamparo ao me virar sozinha era maior que em Cuzco ou Águas Calientes. Logo eu já estava reentrosada, resolvemos ir à orla e começamos a bater papo enquanto tomávamos nossos sorvetes.

No Peru, até o McDonald's vende pollo!


- E aquele rapaz da sinuca... tava muito loco hein? - Comentei.
- Tava não... ele é louco.
- Daonde ele é?
- Dos Isteitis. E tá no hostel há cerca de um mês.
- Nossa, viagem longa...
- Não era pra ser... Acontece que ele perdeu o passaporte e ficou preso no hostel. Enquanto não tiver o documento, só pode sair de lá pra ir até a embaixada resolver esse problema.
- Nossa! Que situação! Ele está há um mês trancado no hostel?!
- Sim, e sem dinheiro. Tem dormido no sofá lá embaixo, pra não ter que pagar um quarto.
- E como ele arrumou aquelas Cusqueñas?
- Ele pede, os hóspedes sempre pagam umas e outras. Aquelas que ele tomou fomos nós que pagamos. Ele começou a pedir mais uma, mais uma, até que eu disse, cara, não dá... Ele ficou meio bravo...
- Mas também, ele disse que o passaporte já tá pronto faz uma semana. Ele que não quer ir buscar.
- Um cara desses, mano, pode ser que nem tenha perdido o passaporte. Acho que ele mesmo é que deu um jeito de sumir com ele. Deve ter jogado na privada e dado a descarga. O cara tá curtindo ficar lá no hostel, isso sim...

***

Já na rua, encontramos uma cabine telefônica e eles resolveram parar para entrar em contato com as respectivas famílias e namoradas. Meus pais estavam inacessíveis naquele dia, então aguardei do lado de fora. Quando o último rapaz apareceu...

- Falei com ela.
- E aí?
- Tá brava porque não liguei mais. (Ria) Falei que eu tava com vocês, que saímos pra beber ontem, hoje viemos pra Lima, só deu tempo de ligar de novo agora. Pô, deixa eu aproveitar, né? Depois do que ela me disse ontem, tenho que aproveitar essa viagem o máximo que puder!

Vendo minha cara de ponto de interrogação, um deles explicou:

- Ele vai ser pai! Recebeu a notícia da namorada, ontem!
- Ah, que notícia boa pra se receber no Peru, por telefone, hein?
- Bom, eu já tava em Puno... Fui pra um bar na beira do lago e enchi a cara pra comemorar!

Eu sabia que, voltando ao Brasil, minha vida estaria completamente mudada: novo trabalho, nova cidade, algum tempo na casa da mãe, muitas coisas para redefinir. Agora conhecia um outro para quem a viagem provavelmente também marcava a intersecção entre duas fases tão diferentes de vida...

***

- E como foi em Nazca? - Perguntei.
- Da hora lá... Tem uma torre onde dá pra subir e ver algumas formas no chão. Mas pra ver tudo, só de avião. O Bruno pegou um aviãozinho teco-teco pra ver as linhas.
- Sério?! Que legal!
- Putz, dá um cagaço, isso sim! - Disse Bruno.
- Hahaha, mas vale a pena, não?
- Ah, já fui uma vez, não quero nunca mais! O cara fica fazendo umas manobras loucas, dá mergulho, vira de lado, de ponta cabeça... Cara, quase gorfei... É pra doido aquilo!
- Hahahaha! E vocês, não foram?
- Ah, cara... quando vi o preço já desanimei um pouco... e depois, falando com um piloto, perdi a coragem de vez...
- Por que, o que o piloto disse?
- Tava tendo uma manifestação pra fechar aquele aeroporto, porque recentemente morreram quatro franceses num voo desses em Nazca... Parece que logo que decolaram, bateu um vento de cima pra baixo que atirou o avião no chão, de uma altura de uns 20 metros, mas com tanta força que não sobreviveu ninguém. Daí o piloto ficou falando que é besteira isso, porque o aeroporto é seguro. Claro que por volta das 11 horas da manhã tem vento, ele não faz mais voo nesse horário, mas no resto do dia é sossegado, é só ter cuidado... É raro morrer gente, antes desses franceses só teve uns dois ou três acidentes no ano... Eu hein, ele acha pouco?!
- Pois é, eu vou ser pai, tenho que pensar nisso agora, né?!

Fiquei pensando que mesmo com esse risco, se eu tivesse chegado a Nazca, eu pegaria o aviãozinho teco-teco... Certas alegrias na vida vêm acompanhadas de algum risco. Fiquei surpresa com esse pensamento, que jamais teria passado pela minha cabeça alguns meses atrás...


As linhas de Nazca, que só formam um desenho compreensível quando vistas do alto

 ***

Já no aeroporto de Lima, onde passei momentos difíceis, conforme já expliquei em O complicado retorno ao Brasil, pensei naquele rapaz do Hostel The Point. Ele estava há um mês sem dinheiro e sem documento, preso em um albergue, dormindo num sofá, comendo e bebendo o que lhe davam alguns turistas bondosos em troca de uma boa conversa e umas partidas de bilhar. E pelo visto, gostava dessa vida, já que não demonstrou interesse em ir buscar o documento que estava pronto.

Na verdade, é possível sobreviver com muito pouco. É perfeitamente possível. E se eu não me desesperasse, poderia até curtir aquela noite no aeroporto de Lima, quando todas as seguranças me foram removidas de uma só vez... ou não, uma garantia eu ainda tinha. De repente, num momento Poliana, pensei: estou contente, porque pelo menos tenho passaporte!

Um comentário:

Tania regina Contreiras disse...

Nossa, você é corajosa, heim, Gagi? Arriscariqa mesmo o tecoteco? Oooooolhaaa...rs Legal demais ouvir os relatos de sua viagem. Conhecer gente nova é sempre bom também, né? Sorvete??? Hummmm...deu vontade.
E vou estando por aqui lendo seus posts.
Beijos