quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Chincheros

De repente o guia anunciou que iríamos para Chincheros, cidade que fica 1.000 metros acima de Cuzco, e que levaríamos ainda cerca de uma hora para chegar até lá. Cansada como eu estava, a notícia não foi muito animadora. Novamente, fui dormindo o caminho todo. E quando cheguei, concluí que foi uma pena não termos começado nossa excursão por ali. De tudo o que vivi no Vale Sagrado, Chincheros foi o que mais me tocou.

E chegamos tarde, com o sol se pondo por trás das montanhas. Para não perder o costume, fotografei o pôr do sol. Fiquei um pouquinho para trás por causa disso. Já era um hábito meu atrasar-me para tirar fotos enquanto o grupo prosseguia para a próxima atração. Nesse caso, especificamente, foi um erro. Quando olhei para a direção na qual o grupo tinha seguido, cadê? Pô, eles estavam ali, menos de um minuto atrás!

Pôr do sol em Chincheros

Comecei a procurá-los, meio nervosa: se me deixassem ali, sabe-se lá como eu voltaria a Cuzco. Só quando tentei encontrá-los é que percebi que havia pelo menos três caminhos por onde poderiam ter enveredado. E percorrendo um por um, não encontrei nem rastro! Cheguei à igreja, onde havia dois vigias na porta, que disseram não ter visto meu grupo por ali. Mas um deles, muito gentil, ajudou-me a procurar. Não foi nada simples: eles haviam mesmo desaparecido exatamente no ponto em que parei para tirar fotos, porque praticamente entraram num buraco no chão, desceram uma escada e foram parar numa espécie de quintal onde as collas faziam artesanato.

Agradeci muito ao vigia que me auxiliou e juntei-me ao grupo novamente. Estavam sentados em roda, tomando chá de coca gentilmente servido pelas moradoras de Chincheros e observando uma moça bonita, com trajes típicos de colla, que explicava como se faziam os artesanatos com lã de alpaca. Aos seus pés, havia uma série de cumbucas com todo tipo de folha, flor, pedra... Matéria prima para fazer os pigmentos com os quais se tingiam os fios. Em Chincheros, a tradição do artesanato inca se manteve e os tecidos de alpaca são feitos manualmente, como se fazia há centenas de anos. A prefeitura fiscaliza os artesãos diariamente, verificando se estão seguindo os velhos costumes, produzindo peças conforme os hábitos originais.

As moças mostram como se tingem os fios de lã de alpaca

A moça mostrou na prática como se faz o pigmento vermelho. Pegou nas mãos um inseto, não deu para ver direito o que era porque estava muito longe, mas tenho a impressão de que era uma joaninha. Sacrificou-a, esmagando nas mãos, e nos mostrou o tom vermelho. Em seguida usou feldspato para conseguir um vermelho mais róseo. E misturando um outro ingrediente, que não consegui entender o que era, obteve um terceiro tom. Passou por nós mostrando a palma da mão com três tonalidades rubras. Depois explicou que, além de tingir os fios de lã de alpaca, o pigmento vermelho feito daquela forma também é usado como batom pelas moças de Chincheros. E, para meu assombro, passou nos lábios a mistura de joaninha com feldspato e alguma outra coisa, dizendo que o colorido dura pelo menos vinte e quatro horas na boca. Mostraram-nos também o material que se usa para fazer os outros pigmentos e como se tecem as malhas no tear. Tudo muito trabalhoso, mas eu via que havia uma dedicação, uma atenção concentrada das mulheres que trabalhavam ali, que levavam a vida toda tingindo e tecendo.

Novelos de lã de alpaca já colorida

Pelo que pude perceber, Chincheros ainda tem uma vida organizada em comunidade. No pátio onde estávamos, trabalhavam doze famílias. Creio que havia outros pátios como aquele, com outras famílias trabalhando. E a economia da cidade é movimentada pelos turistas, que compram os artesanatos produzidos ali.

Subimos para a igreja, aquela onde encontrei o guarda gentil que me ajudou a reencontrar o grupo. Por dentro, é fantástica! Outra daquelas construções que foram erguidas sobre as ruínas dos templos incas demolidos. Novamente, a mistura homogênea entre cultura inca e cultura católica-espanhola. A arquitetura inca se revelava em algumas pistas: as paredes, que nunca faziam ângulos retos (as construções incas sempre têm ângulos variando entre 3 e 7 graus); as portas de formato trapezoidal; um pedacinho de parede de pedra, que conseguíamos ver porque restauradores da igreja resolveram remover um pouquinho do reboco para mostrar aos visitantes que a estrutura da igreja era toda inca. Mas as paredes rebocadas eram completamente pintadas com motivos católicos. Afrescos que cobriam do rodapé ao teto, lembrando-me a Capela Sistina, apesar do estilo tendencioso ao barroco ser completamente diferente do tom clássico predominante no Vaticano. O altar, coberto de folhas de ouro e prata, também tinha santos católicos, daqueles com juntas flexíveis e roupas de pano.

Materiais para tingir a lã

O guia chamou a atenção para o fato de que a maior parte das pinturas não tinha o nome do pintor. De acordo com ele, isso quer dizer que, provavelmente, os artistas eram incas. Os espanhóis não permitiam que assinassem seus nomes nas obras. Eram raros os incas que tinham oportunidade de estudar ou mesmo de pintar alguma coisa e, quando isso acontecia, era preciso manter segredo. Claro que a maior parte dos incas não sabia ler, mas se algum deles aprendesse, poderia reconhecer os nomes dos seus semelhantes nas assinaturas. Esses nomes eram perigosos, porque sempre tinham um sentido relacionado com a religião pagã de seu povo. Diziam os espanhóis que se um inca lesse aqueles nomes, acabaria se lembrando de sua antiga religião, o que poderia corrompê-lo, fazendo-o recair da religião "certa" católica para a religião "errada" dos velhos incas. Descobri, graças à igreja de Chincheros, que além de bons escultores, arquitetos, astrônomos e agrônomos, entre os incas também havia ótimos pintores. Uma pena que era proibido tirar fotos dentro da igreja, não vou poder mostrar a vocês.

Infelizmente, quando saímos da igreja, tudo já estava escuro e tivemos que voltar a Cuzco. Mesmo cansada, eu queria ficar mais em Chincheros, conhecer mais. Foi um dos lugares mais interessantes que vi perto de Cuzco e tivemos pouquíssimo tempo para explorá-lo...

Sempre que vou a lugares assim, tento imaginar como vivem essas pessoas. O que pensam? O que sentem? Como eu seria, se fosse criada numa cultura como essa? É um mistério que me fascina, esse das pessoas com seus diferentes hábitos, costumes, culturas, bem como a influência que o meio pode ter sobre o funcionamento dos seres humanos.

Cheguei em Cuzco ainda mais quebrada que quando voltei de Machu Picchu mas, acreditem se quiserem, ainda fui para a aula particular de salsa. Lembro vagamente dos rodopios na penumbra, do "uno, dos, tres, ... , cinco, seis, siete, ...", "di-le-que-no, cinco, seis, siete", "havana", "ocho", "ocho complicado", "muy bien, tienes movimientos muy latinos".

Voltei para o albergue e ainda tive de arrumar a mala para partir no dia seguinte bem cedo, rumo a Lima e, depois, Brasil. E com as pernas meio trêmulas, ainda passei na Plaza de Armas para despedir-me de um amigo que, infelizmente, tive pouco tempo para conhecer. Por fim, deitei na parte de cima do beliche do albergue, com os músculos palpitando, latejando embaixo do edredon que, finalmente, me isolava do frio montanhoso da noite de Cuzco. Sensação de que, apesar de esgotada, tudo valeu a pena. E já sentia vontade de voltar ao Brasil, de falar português, enxergar rostos conhecidos, comprar as coisas em Real sem pensar a toda hora se o preço é mesmo esse ou se estão me enrolando, comer feijão com farinha, nossa, muito feijão com farinha, por favor!

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