terça-feira, 23 de novembro de 2010

A mendiga escritora

Mesmo miseráveis os poetas, os seus versos serão bons
Chico Buarque em: Choro Bandido

Cinco e meia da tarde, os saltos dos sapatos pretos, que eram meu figurino de pesquisadora séria, batiam compassadamente ao lado do braço inerte que jazia sobre a calçada: tloc, tloc, tloc... E meus olhos passavam varrendo seu corpo imundo, estendido entre a crosta de poeira e a nuvem de fumaça, enquanto sua cabeça, pesada demais para sustentar-se em cima de um pescoço tão frágil, apoiava-se numa almofada completamente coberta por um enxame de letras. Os olhos fechados combinavam com a boca aberta e eu imaginando se aquelas palavras penetravam nos seus sonhos por algum processo osmótico...

Eu passava por ela quase todos os dias no início de 2008, quando arranjei um emprego temporário perto da Avenida Paulista, com o objetivo claro de juntar uma grana para ir a congressos na Europa. Todos os dias eu descia uma alameda bem ao lado do MASP e acabava andando por uma esquina, cruzamento da Peixoto Gomide com a Barata Ribeiro. Era ali que vivia(?) a mendiga escritora, personagem que quase cheguei a conhecer.

Morava na rua, com muitas tralhas mal-acomodadas em caixas de papelão: travesseiro, revistas velhas, liquidificador, panelas, latas, trapos, mancebo, papelão, manta esfarrapada, pregadores de roupa, enfim, uma série de objetos que me pareciam aleatórios, mas deviam ter algum sentido para ela.

Sempre que vejo pessoas assim, singulares, acabo cantando por dentro:


Ninguém pergunta de onde essa gente vem
Chico Buarque em: Brejo da Cruz


Sempre tive curiosidade para conhecer os moradores de rua e essa, em especial, era ainda mais intrigante: ela escrevia.

No primeiro dia eu a vi escrevendo num saco de papel, desses de pão. No outro, era um caderninho. No outro, folhas avulsas. Sempre muito concentrada, acho que nem me notava passar, nem pescava meu olhar curioso querendo flertar com os manuscritos por uma brecha logo acima dos seus ombros. Sete horas da manhã, a mulher escrevendo embaixo de um guarda-chuva que improvisara de teto, encolhida e umedecida no seu minúsculo e ineficiente refúgio na tempestade. Ela escrevia sem parar em... uma almofada! Com caneta hidrocor. Ah, se ao menos eu pudesse furtar uma única folha com aqueles misteriosos garranchos!

No dia seguinte, cabeça ainda repousando na almofada, ela lia. Diminuí o ritmo dos meus passos apressados: lia o quê, gente do céu? "Murder in the Orient Express", Agatha Cristie. Será que lia? Será que compreendia? Falava inglês, a mendiga escritora? Afinal, mulher, de onde você vem?!

Cada vez mais interessada, fui tomando coragem para conversar com ela. Amanhã, pensava eu, amanhã eu falo. Mas onde é que fica a porta para ingressar nesse mundo tão distante do meu? Compartilhávamos um espaço: eu diariamente invadia a casa dela com o tloc tloc do salto do meu sapato. Mas esse espaço físico não se traduzia num espaço mental ou afetivo que proporcionasse o diálogo, ainda que por alguns momentos. 

Um dia a mulher usou um lençol para improvisar uma cortina no seu lar de paredes invisíveis, que não lhe dava nenhuma privacidade. Por uma frestinha, eu a vi escrevendo. Hoje eu falo com ela! Hoje eu falo! Que nada, faltava coragem. E a mulher escrevendo... num pufe! Sim, um pufe desses de sentar. Às sete horas da manhã já estava, digamos, com 40% de sua superfície preenchida por letras de caneta hidrocor. Às cinco e meia da tarde, já 100% coberto por palavras, funcionava como uma poltrona na provável sala de visitas que ela instalara na calçada.

Decidi conhecê-la amanhã sem falta de novo. E na saída do trabalho, cinco e meia da tarde, fui passando devagarzinho, o tloc tloc desacelerando, até que parei ao seu lado.

- Como é seu nome?

Silêncio. Ela não me via, nem me ouvia? Seus olhos vidrados numa folha de papel, que recebia as marcas imputadas por sua frenética caneta. Tentei de novo.

- Oi, tudo bem? Como você se chama?

Ela deu um pulo, uma espécie de espasmo, parece ter levado um baita susto, que repercutiu em mim: pulei também. Mas não desisti.

- Sempre passo aqui e vejo a senhora escrevendo. A senhora gosta muito de escrever, né?

Os olhos dela cruzaram com os meus e não entendi o que diziam. Muito azuis, quase cinzentos, pupilas estreitas, nenhum brilho, olhar tão opaco, quase se apagando. Parecia desconcertada, sem entender nada, talvez apavorada... E essa falta de sentido em seu rosto me apavorou também. Virei as costas e segui meu rumo, o ponto de ônibus. Mas no meio do caminho, percebi que não queria desistir. Bolei uma nova estratégia: passei na papelaria, comprei caderno, lápis, borracha e caneta. Pedi para embrulhar para presente.

No dia seguinte, seis e meia da manhã, eu já passava pela esquina dela. Cadê a mulher? Não estava lá. Suas coisas encostadas no muro, mais organizadas que o normal, encaixotadas, como se ela estivesse de mudança. Fui trabalhar. Na volta, apenas o vazio: nem mulher, nem caixas, nem objetos divertidos, nem palavras, nem letras, nem livros, nem revistas. Só poeira e lixo cobriam a calçada.

Mudou-se para outra esquina? Foi levada pela polícia? Pela assistência social? Morreu? Mistério. Nunca pude ler suas palavras, que todos os dias me intrigavam.

Hoje, trabalhando com moradores de rua na Prefeitura de Valinhos, sempre me lembro dela. Agora posso saber das histórias, saber de onde essa gente vem. Fico torcendo pela mendiga escritora, para que suas palavras não cessem, continuem brotando e preenchendo as almofadas, pufes, cadernos e sacos de pão, quem sabe num movimento capaz de preencher sua vida, talvez tão sem sentido quanto se mostrou o olhar que ela me dirigiu na única vez em que me dirigi a ela.

Um comentário:

Paulo Leme disse...

Que sensação de déjá-vu, Gabi! Certamente já vivenciei coisa parecida mas seria incapaz de descrever, ou melhor, contar com toda propriedade como você. E a história merece fazer parte do seu livro que já deve estar no forno, não?
Beijo grandão.
Paulo Leme