segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Primeiro encontro

Primeiro dia de viagem. Assim que desci do ônibus em que viajei de Goiânia a Barra do Garças, tudo o que eu queria era tomar banho, comer e dormir e eu não sabia qual dessas coisas faria primeiro. O estômago roncou mais alto e, após largar a mochila no primeiro hotel que encontrei, logo atrás da rodoviária, fui em busca de alimento. Havia uma avenida ali perto e imaginei que, caminhando por ela, eu encontraria alguma lanchonete, restaurante ou coisa do gênero. Muitas coisas remetiam a Goiás nos nomes de bares e hotéis e fiquei pensando se aqueles matogrossenses tinham complexo de goiano. Achei meio estranha a atmosfera sombria e mal iluminada da avenida, que parecia conter apenas botecos. Assim que encontrei um lugar que parecia não ter bêbados, parei para comer.

Olhando o menu na parede, logo atrás do balcão, sorri ao descobrir que um X-salada custava R$2,50 e um X-tudo R$4,00. Onde é que eu encontraria preços assim em São Paulo? Enquanto aguardava o lanche, resolvi perguntar como poderia ir ao centro da cidade.

- De que cidade?, perguntou a dona da lanchonete.
- Ué, desta cidade, de Barra do Garças, respondi eu.
- Aqui não é Barra, é Aragarças.
- ???
- Pra ir pro centro de Barra do Garças, você tem que seguir esta avenida, atravessar duas pontes, daí já vai ver o centro logo à frente. Se entrar na bifurcação à esquerda, vai para o centro de Pontal, que é outra cidade. À direita, tem o centro de Barra do Garças, que também é outra cidade. E aqui é Aragarças, que ainda fica no estado de Goiás. Pra lá da segunda ponte já é Mato Grosso. Mas Barra do Garças é longe, melhor você pegar um mototáxi.

Momento em que a cabeça pára para processar informações. Descoberta número 1: eu estava em Aragarças, não em Barra do Garças. Descoberta número 2: eu estava em Goiás, não no Mato Grosso. Descoberta número 3: aqui tem mototáxi, aquela coisa que tentaram regulamentar na periferia de São Paulo, mas o Kassab não deixou.

- Barra do Garças fica longe? Longe quanto, senhora?
- Ah, bem longe! Dá quase 15 minutos andando.

Ri por dentro. "Quase 15 minutos andando" é longe para eles. E eu acostumada a andar 25 minutos todos os dias para ir de casa até o trabalho, achando que era muito perto... Não, não seria necessário fazer minha estreia no mototáxi naquele momento.

Um homem se aproximou, acompanhado de um garotinho.

- Você não é daqui?
- Não.
- De onde você é?
- De São Paulo.
- Veio visitar parentes?
- Não.
- Tá sozinha?!
- Tô.
- Quantos anos você tem?
- 26.
- Mulher viajando sozinha?!
- É. Algum problema?
- Por que veio sozinha?
- Porque quis.
- Sua família SABE que você tá aqui? Você brigou com seus pais?
- Sabem sim, só vim passear, não briguei com ninguém não.

Interrogatório. O homem repetiu essas perguntas várias vezes, como que querendo encontrar alguma contradição no que eu dizia. Quando finalmente se convenceu, me ofereceu uma cerveja, que recusei. Mas foi o sinal de que eu poderia começar a entrevistá-lo, se quisesse.

- É seu filho?
- É sim, meu filho caçula, tem 5 anos.
- Que lindo! Você tem outros?
- Tenho 5 filhos, mas só esse e mais dois que moram comigo aqui. Os outros dois tão em São Paulo. Também sou de lá, morava na Zona Leste, mas não piso em São Paulo faz 20 anos. Minha primeira filha é mais velha que você, tá com mais de 30 anos.
- E por que saiu de São Paulo?
- Fui assaltado, levaram minha carteira, fiquei morrendo de medo de sair na rua. Decidi que não queria mais essa vida, daí vim pra cá, reconstruí tudo. Mas a família não quis vir.
- E por que escolheu esta região?
- Eu tinha um irmão que morava aqui. Vim trabalhar com ele.
- Acho que você nem sente falta de São Paulo né?
- De jeito nenhum, não piso mais lá! Da última vez que fui, faz 20 anos, fiquei na casa de um amigo. A janela do quarto onde eu dormia era no segundo andar e tinha grade. Deixei a janela aberta porque tava muito quente, e meu amigo brigou comigo, me chamou de louco, porque alguém podia botar um revólver pela janela e me fazer abrir a porta. Ah, eu não consigo ficar em lugar assim, me sinto preso!

A conversa foi se desenrolando enquanto eu comia meu sanduíche e tomava refrigerante. O garotinho pulando pra lá e pra cá, querendo atenção, quase estourou um saquinho de catchup na minha roupa. Enquanto isso, o pai ia se assanhando...

- Não quer mesmo uma cerveja? Pega aí, eu pago! Graças a Deus, dinheiro não é problema pra mim. Você não bebe? Se você quiser, te levo para conhecer uns lugares legais em Barra do Garças. Toma, pega meu cartão, tem meu telefone aqui. Tenho uma loja aqui em Aragarças e outra em Barra, acredita? Já sou dono de duas lojas aqui na região. Mas olha, não me liga amanhã, liga segunda, porque minha mulher é ciumenta. Tenho certeza que meu filho quando chegar em casa vai caguetar, vai dizer: mãe, a gente conheceu a Gabriela, e minha esposa vai ficar louca da vida. Mas me liga segunda, porque eu vou estar trabalhando, mas como sou empresário, posso sair quando quiser, daí a gente faz um churrasquinho perto de alguma cachoeira, que tal? Me liga, posso te levar pra passear de carro, vamos aproveitar! Até quando você fica aqui?

À medida que falava, os olhos dele iam se tornando cada vez mais famintos. Fui desconversando, terminei o sanduíche, paguei e estava saindo, quando ele disse:

- Então você me liga, né?
- Ligo, claro, ligo sim.

Pausa. Ele se fez sério.

- Você não vai ligar. Sei que não.

Tentei segurar um sorriso, mas não deu. Foi a primeira coisa que gostei de ouvir sair da boca dele. A primeira atitude imprevista, a primeira vez que ele deixava de ser um personagem plano para tornar-se esférico. Já em pé, pronta para partir no rumo que me disseram ser o de Barra do Garças, respondi:

- Adoro conversar com pessoas inteligentes!

E saí pela avenida, sem olhar para trás, apesar de curiosa para ver a reação que se estamparia no rosto dele. Já na ponte, abri a bolsa para pegar a máquina fotográfica e um vento soprou de algum lugar, levando o cartão com o contato dele, que estava no mesmo compartimento. Observando aquele pedaço de cartolina voando rio abaixo, o jeito foi rir de novo, rir de como a natureza parece entender minha vontade.

7 comentários:

Anônimo disse...

A cidade de Aragarças, por ser bem menos desenvolvida que Barra, torna-se apenas dormitório para as pessoas que atravessam todos os dias para trabalhar em Barra. Digamos que o cidadão estava numa espécie de "Zona Leste Goiana", e que o centro comercial é a cidade vizinha.
A nota triste está na prostituição infantil bem naquela região que vc ficou... Meninas de 12 anos ou menos vão ao encontro dos caminhoneiros que pernoitam por ali, ou nas proximidades do posto fiscal, já perto da ponte que separa os dois estados.
Um abraço

Gabi disse...

Infelizmente percebi a questão da prostituição infantil. Tive a impressão, e posso estar errada, de que o homem se aproximou de mim justamente porque pensou que eu fosse mais nova, adolescente.

Conheci um homem que trabalhou num garimpo no Mato Grosso e disse que certa vez foi abordado por duas meninas de cerca de 10 anos de idade, que se ofereceram a ele, pedindo como pagamento que ele pagasse um sorvete para cada uma. A situação é muito triste e pior ainda é ver a má vontade do poder público em buscar saídas para essa situação.

No mais, percebi que Aragarças era mesmo bem mais pobre que Barra e que as pessoas transitam bastante para lá e para cá.

"Zona Leste Goiana" foi uma boa expressão para descrever a situação de Aragarças rsrsrsrs

Gabi disse...

Aliás, só corrigindo, a má vontade não é só do poder público. É também dos cidadãos, dos profissionais dos serviços públicos, dos pais dessas crianças, dos professores, enfim, de todo um contingente de pessoas que preferem fingir que o problema não existe, que não está lá. E assim, as meninas passam a inexistir também...

Anônimo disse...

Só para que não fique nenhuma má impressão aos leitores do Blog sobre o que escrevi da ZL de São Paulo, morei até os sete anos em Rio Grande da Serra (perto de Paranapiacaba, como já lhe disse) e, dos sete até os 22, na Zona Leste... Por isso tomei a liberdade de falar dela. ;)

Dos 22 pra frente, "é nóis na fita, é nóis nas treta cabulosa e nas parada firmeza do Roncador, tá ligado mano?" rs. Um abração.

Gabi disse...

Hahaha nunca morei na ZL mas nada contra... :-)

Marina disse...

Você é bastante corajosa... não é qualquer um que se aventura desse jeito por ai! (Talvez um pouco maluca também)
Gosto muito da maneira que você escreve. Consigo te ver em cada uma dessas cenas e me sinto envolvida na história.

Carol Nogueira disse...

Gabi, adorei seu post. E te achei muito corajosa também. Parabéns. Beijão.