sexta-feira, 22 de outubro de 2010

San Matias - Parte II

Acordei no mesmo quarto de hotel meio encardido, toda suada, morrendo de calor, porém mais calma. De estômago cheio e menos cansada, consegui deixar de sentir medo. San Mathias me lembra Vale dos Sonhos: um povoado que tem ruas de terra vermelha e umas poucas pessoas aglutinadas em torno de um pequeno comércio, em meio a um monte de fazendas.

 Regulamento do Hotel La Paz: "... el que se queda afuera se queda ..."

Qual é a diferença entre San Matias e as outras cidades pequenas que já conheci? Muitas! A língua, as pessoas, a falta de infra-estrutura, a energia pesada de um lugar onde a única lei que funciona é a da malandragem. Mas ao mesmo tempo, San Matias assemelha-se às pequenas cidades brasileiras no que diz respeito ao estilo de vida dos habitantes: as pessoas se conhecem, é uma comunidade, tudo se pode fazer a pé (embora teimem em usar moto e camionete), criam-se galinhas e outros animais comestíveis e domésticos em casa. Foi pensando nisso que me perguntei: afinal, qual é a dimensão real do perigo? O que me ameaça? Concluí que o medo e o perigo estão na nossa cabeça e decidi não ter mais medo.

Resolvi sair, tomar ar, comprar água no El Pantanal e descobrir se o comércio já havia voltado a funcionar. Infelizmente, ainda tudo fechado. Até El Pantanal estava trancado. Sentei no banco de praça e fiquei olhando o movimento (ou melhor, a falta dele). Crianças brincando, mulheres passando com filhos e sombrinhas, pessoal andando de moto. Aqui ninguém usa capacete, é comum ver mais de duas pessoas na mesma moto e quase todas as camionetes levam e trazem pessoas na carroceria. Uma moto levando duas mulheres e duas crianças pequenas passou por mim diversas vezes.

Havia um carrinho de vender uma bebida estranha, só sei que é gelada e ocre. Muita gente aglomerada em volta, resolvi ver o que era e, quem sabe, comprar água (se tivesse). Não tinha água, mas tinha muitos bêbados e um invocou comigo. Ofereceu-me a tal bebida e sentiu-se ofendido porque recusei. Foi me seguindo pela praça, dizendo: “Quién es usted y lo que hace en mi país?”. Atravessei a rua e fui para a frente do El Pantanal. Lá estava um rapaz, também segurando a tal bebida. Sorriu para mim: “Él está borracho”. Sorri também. Falei que não sabia o que era que me ofereceram, mas queria apenas água. Ele bateu na janela do El Pantanal e, após alguns minutos, a dona brasileira apareceu. Entendi, então, o esquema de fura-greve... e comprei duas garrafas de água.

O borracho continuava me perseguindo. Não dei bola, sentei numa sarjeta e lá fiquei, saboreando a água. Ele continuou: “¿Hay Dios? ¿Sí o no? ¡Yo le pregunto! ¿Conoce Abraan? ¿Sí o no? ¡Yo le pregunto! ¿Abraan habló a Dios? ¿Sí o no? ¿Usted habló a Dios? ¿Que usted hace en mi país? ¿Es una profetiza? ¡Entonces profetiza conmigo! ¿Por qué no profetizas? ¡¿Por qué?!”. Uma senhora passou por nós, o borracho disse a ela: “Diós mandó una mujer para profetizar conmigo, ¡pero ella no profetiza!”. E começou a chorar. Depois mandou eu entrar “para adentro”, para que não me fizessem mal, porque preciso ser protegida, ninguém pode me tocar. E continuou em prantos.

Um soldado fardado observava a cena e aproximou-se de mim. O nome dele é Sérgio, é de Santa Cruz e está em San Matias para “servir a la Patria”. Diz isso com muito orgulho, com o patriotismo que parece ser característico de todos os bolivianos. Sugeriu que eu me afastasse dali, fosse para longe do borracho.  E voltou ao seu serviço.

Fui sentar do outro lado da praça e, felizmente, o borracho não me seguiu. Um velho andava devagar, parecia cansado, talvez dolorido. Um taxi passou, o velho fez sinal, chamou em voz alta. O taxista colocou a cabeça para fora do carro e gritou: “¡No se puede trabajar ahora!”. Paralização na Bolívia significa parar mesmo.

Igreja da praça

Cansei de olhar a praça e decidi voltar para o hotel. Quase chegando, ouvi alguém dizer: “Olá”, e não “Hola”. Olhei para o lado, era um rapaz. Brasileiro, morando em San Matias há 19 anos. Trabalha na clínica veterinária do irmão, vendem vacinas, ração, produtos para o gado. Puxou um banquinho, ficamos proseando na calçada. Foi um alívio achar alguém para conversar. Ele disse que era uma pena que eu já estava em hotel, porque poderia me oferecer a casa dele. Que se soubesse que eu era brasileira, teria me oferecido almoço na casa dele. Ofereceu-se para me acompanhar à casa de câmbio para trocar dinheiro, disse que ia me levar na que paga melhor.

Muito gentil, mas neste lugar não consigo confiar em ninguém. Malandro eu reconheço só de olhar nos olhos. Os brasileiros que estão aqui, de maneira geral, não inspiram confiança. Fico pensando o que fazem aqui, sendo que há tantas cidades de mesmo porte com melhor infra-estrutura de nosso lado da fronteira. Do que estão fugindo? O rapaz que conheci disse que aqui se pode ganhar dinheiro com o comércio, mas que tudo tem estado muito parado, por isso ele pensa em voltar ao Brasil no ano que vem. Sobre a paralização, explicou que é porque tacaram fogo numa ponte e agora as pessoas protestavam para que fosse reconstruída, mas usando um material melhor, como o concreto. No último “paro”, alguns comerciantes ficaram abertos. Desta vez, avisaram que se alguém abrisse loja, eles invadiriam e saqueariam, então ninguém se atreveu.

 A praça é o único lugar bonitinho da cidade

Apesar de gentil, o rapaz tentava me levar na conversa o tempo todo. Queria que eu desse meu dinheiro para ele trocar com uma conhecida, que pagaria mais pesos por meus reais. Ofereceu-se para ir sozinho de bicicleta até lá, levando a grana. Claro que recusei. Queria pegar o carro para me levar para jantar não sei onde. Recusei também. Por fim, perguntou se meu hotel tinha TV e sugeriu de ir comigo para o quarto “ver um filminho”. Respirei fundo, engoli o “vai pra puta que o pariu” (sabe-se lá se esse povo anda armado) e falei: “não quero, boa noite”.

Num lugar assim, o melhor que eu podia fazer é me trancar no quarto abafado e esperar a hora de ir embora. Era só dormir que acabava. Só uma noite. No dia seguinte, eu partiria para Santa Cruz e tudo ficaria bem. Deitei na cama com o laptop no colo, agradecendo por estar sozinha, mas depois de escrever umas poucas linhas, adormeci de novo, apesar de não ser nem 10h da noite. Mecanismo de defesa: eu não estava aguentando tanta tensão.

2 comentários:

Anônimo disse...

si realmente la plaza es bonita...
pero encuentras cosas mejores sy paseas mas.

Anônimo disse...

Vc e muito porca de comer na bolivia....